Vivemos em um mundo em que, agora, quem hackeia o sistema é o próprio sistema. Criam-se leis, regras, órgãos, burocracias, tudo para adaptá-lo, o sistema, a uma sociedade. O problema é que nem ele consegue acompanhar suas próprias proposições. Os cidadãos, a sociedade, então, que um dia eram quem hackeava e iam contra o estabelecido, lutam para que esse mesmo sistema siga suas próprias regras. São os hackers do bem. A obediência civil.
O papel deles é empregar táticas de guerrilha para fazer com que ele, o sistema, obedeça o que propôs. Um ativismo para garantir os direitos – e não para criá-los. Subversão afim de garanti-lo – e não destruí-lo.
Um grupo francês chamado UX {Urban Experiment} mapeou os túneis do subterrâneo parisiense para, entre tantas outras atividades, restaurar obras públicas que apresentam mau funcionamento. Sem consentimento de algum órgão governamental, ou mesmo da diretoria da instituição responsável, o grupo invadiu o Panthéon e restaurou um relógio centenário quebrado desde a década de 1960.
Sem verbas públicas, sem cobrança de mais impostos. Só a vontade de restaurar uma obra que, por ser pública, deveria funcionar e foi esquecida pelo próprio sistema que a criou. O sistema, mesmo quando errado, tem tanto medo da mudança que prefere danificar algo novamente do que aceitar o novo, o diferente.
Esse caso em particular ainda tem o agravante de que, ao comunicar ao diretor da instituição de que o relógio estava por fim consertado, ele ordenou para que o quebrasse de novo.
Hoje, os grupos ativistas parecem seguir uma linha não mais de desobediência, mas sim de concordância com o que está estabelecido e de uma forma bem mais ampla do que o próprio sistema pode seguir. Se em tempos atrás a tática era ser a mudança que se acreditava no mundo, atualmente concorda-se com o estabelecido – e se quer que ele funcione. É a civilidade obediente.
O Festival BaixoCentro, que aconteceu na última semana de março de 2012, por exemplo, prega a ocupação dos espaços públicos pelos cidadãos, tendo como ponto de partida o centro degradado de São Paulo. A cidade, metrópole, parece estar fechada, trancafiada em políticas públicas que obrigam seus moradores a ficar presos em engarrafamentos de centenas de quilômetros; construir condomínios nos quais não se precisa sair para nada; esquecer que existem vizinhos ou comunidades para fazer parte. A cidade tornou-se algo inacessível e impossível de se usufruir.
O evento usou as leis vigentes para produzir cem atividades de arte de rua (seja lá qual for a definição para isso) sem pedir nenhuma autorização para os órgãos governamentais. Não é preciso. Ocupar as ruas é um direito que o governo faz com que os cidadãos se esqueçam, por impor políticas públicas catastróficas. Organizou-se o Festival como forma de lembrar aos moradores que a cidade pode ser usufruída. E que isto está na lei. E que as ruas, em vez de para os carros, são para dançar.
O mesmo acontece com o grupo ativista Transparência Hacker. Depois de um tempo articulando um grupo interessado em governo e dados abertos, hoje há o trabalho de se criar a cultura sobre o tema, de forma a influenciar legisladores na elaboração de leis sobre transparência; a compilar e divulgar padrões para facilitar a visualização e leitura dos dados por máquinas; e a articular uma comunidade cada vez mais influente no tema.
Eles não estão preocupados em mudar a Constituição, ou algo que o valha.Pelo contrário. Eles lutam para que o governo e o sistema sigam as regras que eles próprios criaram, afinal, é um direito do cidadão ter acesso aos documentos, contas e dados que um órgão governamental produz. Tudo é público. E a publicização deles é um dever.
Essa ideia pode gerar ainda outras atividades que, digamos, são um pouco mais subversivas, mas que são todas igualmente “do bem”. Qual a função social, por exemplo, de uma casa quando os donos estão viajando? Durante dias, e até semanas, os espaços, os móveis, os objetos, tudo ficará sem utilização. Ninguém usando, ninguém usufruindo. Mas por quê? Por que, enquanto os donos estão longe, não emprestar a casa vacante para alguém que não tem onde morar? Em troca, sua roupa estará limpa, seu rádio consertado, seu lixo retirado, tudo em perfeito estado para que se encontre o lar bem melhor do que quando se saiu.
O filme coreano “Casa Vazia” mostra exatamente esse cenário. É um homem que sai pelas ruas colando folhetos de serviços de entrega de comida nas portas das casas para identificar os imóveis vazios (se os donos estiverem viajando, o folheto continuará grudado na porta; se estiverem na cidade, o tirarão assim que o virem). O protagonista, então, entra (invade?), usufrui dos móveis e comidas, lava a roupa, limpa a casa, conserta o que estiver quebrado e, antes dos donos voltarem (espera-se!), vai embora. Não está roubando, não está danificando. Apenas usa o que não está sendo usado. Qual a diferença desse desuso para leis que são ignoradas pelo próprio sistema? Não são ambas subutilizadas?
A subversão, no fim, continua existindo, mas o que muda são as ferramentas usadas. Quer-se ainda mudar o mundo, mas de forma que o próprio sistema consiga acompanhar a mudança. Sem juízo de valor algum, os hackers, hoje, são mais obedientes do que o próprio sistema.
- Artivismo no subterrâneo: a organização parisiense Untergunther UX “usa, melhora e restaura a herança escondida e abandonada da cidade”. http://ugwk.org
- Retomando a urbe: Festival BaixoCentro propôs modelo alternativo de ocupação do espaço público paulistano. Foto: Bruno Fernandes
- Repaginação da cidade: intervenção durante o Festival BaixoCentro. Foto: Bruno Fernandes
- Cultura digital em trânsito: Ônibus Hacker, um projeto do Transparência Hacker, durante “invasão” da Cracolândia (SP). Foto: Bruno Fernandes