
Aaron em um evento da Creative Commons Foto: Fred Benenson (2008)
Aaron Swarz tornou-se uma celebridade. Para o grande público, principalmente depois de seu suicídio em 11 de janeiro de 2013, aos 26 anos. Em uma busca no Google encontramos em torno de 175 mil resultados para “Aaron genius” (Aaron gênio). Textos que detalham o retrato de um menino prodígio, possuidor de uma “genialidade” demonstrada precocemente ao desenvolver com outros colegas projetos como o Infogami (que foi incorporado depois ao Reddit), o Markdown e o RSS. Estes relatos se multiplicaram após sua morte, ofuscando de certa forma momentos dramáticos de sua vida, e em muitos casos associando sua inteligência a um quadro depressivo (embora nenhum diagnóstico médico comprove tal afirmação) e dificultando compreender o alcance do processo judicial que estava enfrentando na época de sua morte.
Os projetos citados acima alcançaram grande sucesso comercial e Aaron foi convidado a ser estudante em uma classe especial para alunos prodígios na Universidade de Stanford (EUA), o que colidia com seu interesse em espaços de livre criação e compartilhamento de informações. A universidade sempre esteve interessada na capacidade e potencial de Swarz, que nunca esteve inteiramente confortável neste ambiente (uma das razões pelas quais ele nunca chegou a terminar um curso formal de graduação, segundo ele próprio). Na universidade era possível estar em contato com pessoas interessantes que possuíam objetivos comuns aos dele, mas o conhecimento lá gerado era propriedade de poucos, mesmo com o potencial de difusão da internet. E Swarz já havia entendido que o poder na era das redes estava nas mãos de quem controlava os canais de informação e tornava disponível alguns conteúdos em detrimentos de outros, a partir de critérios que os próprios usuários não controlam. A pesquisa científica é realizada, em grande parte, a partir de financiamento público, mas a distribuição deste conhecimento fica nas mãos de sistemas de indexação privados, que não raro servem de critério para avaliação da produção dos pesquisadores acadêmicos. Já não se trata apenas de acesso, mas de uma estrutura que valida a ciência produzida para entregá-la nas mãos de poucos. Quem não participa da estrutura tem grandes chances de ter sua produção desconsiderada dentro da própria academia.

Em 2012, protestando contra o SOPA – Stop Online Piracy Act (Lei de Combate à Pirataria Online). Foto: Daniel J. Sieradski
No Open Access Guerrilla Manifesto, Swartz aponta diretamente o problema de uma estrutura corrompida e excludente: “Grandes corporações, obviamente, estão cegas pela ganância. As leis sob as quais elas operam pedem isso (…). E os políticos que eles compraram os apóiam, aprovando leis que lhes dão poder exclusivo para decidir quem pode fazer cópias.”
Como hacker, Aaron acreditava em desmontar, abrir a caixa preta de sistemas para expor como as coisas funcionam e criar alternativas fora do uso previsto. Ao entender os sistemas que permeavam a distribuição de conhecimento produzido nas universidades, viu as entranhas de um sistema educativo que esconde perversidades típicas do mercado e decidiu agir.
Entre o fim de 2010 e o começo de 2011, utilizou uma conexão de internet como convidado dentro do MIT (Massachusetts Institute of Technology) com o codinome Gary Host, abreviado para ghost (fantasma) e fez download de milhares (na realidade, estima-se mais de 4 milhões) de artigos científicos do portal JSTOR (Journal Storage). Após os primeiros downloads massivos, o computador de Swarz foi encontrado e uma câmera foi instalada onde ele estava, para reunir provas contra ele. Vale notar que o Open Access Guerrilla Manifesto também foi utilizado como prova por parte da promotoria, afirmando que Aaron tinha a intenção de disponibilizar o material via redes P2P1, e assim configurar seus atos como crime. O fato é que a justiça já estava tentando há algum tempo encontrar algo que pudesse incriminar Swarz, já que o download massivo de artigos científicos, em si, não deveria constituir um crime. David Segal, da ONG Demand Progress, à qual Swarz estava ligado, comparou a acusação a querer prender alguém por “olhar muitos livros em uma biblioteca”.2

Graffiti do artista BAMN, no Brooklyn (Nova York), em homenagem a Swartz.
A Computer Fraud and Abuse Act foi uma emenda às leis de fraude contra computadores criada nos EUA em 1986 que, pela sua amplitude de abordagem (pensando que foi criada antes da internet e dos cibercrimes como conhecemos hoje), permite punir severamente indivíduos com base, por exemplo, simplesmente no não cumprimento dos termos de uso de serviço. Com base nesta lei, a promotoria conseguiu aumentar as acusações contra Swarz, que antes eram em torno de quatro, para treze, aumentando também sua possível pena para 35 anos de prisão, além de multa de 1 milhão de dólares.
Ao ser retratado como um gênio da computação, as causas pelas quais Swarz lutava parecem pertencer ao nebuloso e cifrado mundo dos geek3, interessando apenas a um pequeno grupo de pessoas. Esta idéia busca tornar invisível ou limitar o alcance dos temas em questão, como o controle de informação, que permeia desde o acesso a papers acadêmicos até processos como o Wikileaks. O fato do julgamento de Swartz ter ocorrido de modo quase exemplar, com extrema rigidez por parte da promotoria, nos mostra que a causa defendida por ele era muito mais relevante e ampla do que os retratos do menino prodígio permitem entrever. Um dos resultados disso é a lei para revisão da CFAA que leva o nome do ativista, proposta em 2014 pela congressista Zoe Lofgreen, que não recebeu apoio do congresso americano para ser sequer votada (ela prevê excluir violações ou não cumprimento dos termos de serviço da lista de crimes previstos). De acordo com o professor de direito Orin Kerr, da Washington University, a revisão da lei não suscitou interesse do grande público, já que só se referia a um grupo específico – embora o lobby de empresas contra ela, como a desenvolvedora de software Oracle, fosse notório.
O questionamento de Swarz em relação às regras de distribuição das informações científicas é bastante simples e está longe de ser técnico ou geekie: como um conhecimento produzido, em grande parte com dinheiro público, pode se transformar em produto a ser comercializado apenas em centros de saber que possuem orçamento para isso? O conhecimento pode ser comparado a um produto que tem seu uso esgotado por quem o usa, ou vai ganhando relevância exatamente à medida em que vai sendo compartilhado entre mais pessoas? A resposta parece ser tão óbvia que a própria JSTOR esclareceu publicamente que não faria nenhuma acusação formal sobre o caso. Além disso, justificou-se após o suicídio de Swarz afirmando que é apenas uma ferramenta de ampliação do acesso aos periódicos científicos e que as assinaturas servem apenas para dar suporte ao serviço. No entanto, o professor da Escola de Direito de Harvard e especialista em direitos autorais Lawrence Lessig disse que, ao serem questionados (antes da morte do jovem) sobre o custo para abrir sua base de dados, estimaram em 250 milhões de dólares. Da mesma forma, de acordo com as regras do African Access Initiative disponíveis no próprio site da JSTOR, apenas instituições cadastradas (universidades, escolas, ONGs, museus) podem acessar os arquivos, contrariando outra afirmação de que ela permite o acesso livre à base de dados nos países em desenvolvimento.
Da mesma forma, é possível encontrar uma série de contradições entre a postura oficial do MIT e dos agentes do governo sobre o que realmente aconteceu durante a construção do caso de Swarz, para que o ocorrido pudesse ser configurado como crime. Embora o MIT tenha assumido publicamente uma postura “neutra” diante do caso, existem informações, que vieram à tona durante o processo, que mostram que não foi exatamente assim. Emails mostram que o Serviço Secreto não conseguiu acessar algumas informações do computador de Aaron e pediu ajuda ao MIT. O Departamento de IS&T (Information Systems and Technology) da universidade instruiu como hackear o computador. De acordo com Lawrence Lessig, o MIT disse estar colaborando com a promotoria em termos de esclarecer que dados eles precisariam reunir para acusar Swarz, sem no entanto mostrar que talvez este se tratasse de um caso que poderia ser resolvido internamente, já que a própria JSTOR decidiu não prestar queixa às autoridades, já que nenhum paper havia sido distribuído por Swarz. “Eles chamam isso de neutralidade”, diz Robert Swarz, pai de Aaron. Durante o funeral, o Sr. Swarz citou Steve Wozniak, Steve Jobs, Bill Gates, Mark Zuckerberg, entre outros, que de alguma forma burlaram a lei para desenvolver seus produtos de sucesso. E concluiu: “Estas pessoas fizeram exatamente o que o MIT disse a eles: foram além dos limites impostos… mas hoje o MIT destrói este tipo de pessoa”.
No entanto, podemos afirmar que ir contra a lei para favorecer a criação de produtos não é a mesma coisa que ir contra ela para tornar o conhecimento livre, sem nenhum ânimo de lucro, mesmo que contrariando o interesse de empresas e governos. Diversas análises do processo judicial mostram que o caso de Swarz foi cuidadosamente estruturado para servir de exemplo a outros ativistas com intenções similares. O que pode ser mais sério depois da morte de Swarz é não ser possível enxergar para além da fantasmagoria em torno da idéia do mártir e do gênio, que cria especificidade onde deveria haver o comum. Como definem Cunha Junior e Damião, a fantasmagoria é “a ilusão como imagem mental que percebe o mundo, corresponde-se com ele e o caracteriza”. A fantasmagoria não é o real, são produções que, assim como foram construídas, podem e devem ser evidenciadas e desfeitas. Swarz, com seu codinome ghost, era tudo, menos fantasmagórico: era a própria concretude do ato de tornar o saber científico propriedade de todos. Entre o grupo que o homenageou no MIT um ano após sua morte podia-se ler um cartaz: “vamos continuar”. É um compromisso que devemos todos assumir coletivamente.

Foto: Quinn Norton
1P2P (peer-to-peer, do inglês par-a-par) é uma arquitetura de redes de computadores onde cada um dos pontos da rede funciona tanto como cliente quanto como servidor, permitindo compartilhamentos de serviços e dados sem a necessidade de um servidor central. Por exemplo, Naspster e BitTorrent.
2“Open information activist indicted in JSTOR case.” Library Journal 1 Aug. 2011: 14. Academic OneFile. Web. 12 Aug. 2014.
3Geek é uma gíria em inglês que se refere a pessoas excêntricas, obcecadas por tecnologia, eletrônica, joghttp://en.wikipedia.org/wiki/Computer_Fraud_and_Abuse_Actos, histórias em quadrinhos, livros, filmes, animes e séries.