
Haidée Lima
Para o bom entendimento do presente texto, peço ao leitor que tome como verdadeiro o princípio elaborado pelo sociólogo francês Bruno Latour: Toda rede tende à estabilização. Seja nas raízes aéreas sobre água salobra no mangue, seja na complexa combinação de relacionamentos sociais e de produção. Quando essas redes se estabilizam, tomam a forma de caixas-pretas.
Existem dois momentos em que as caixas-pretas são abertas. O primeiro deles é quando ocorre o defeito. Sobre ele, vamos considerar, apenas como exercício, dois possíveis exemplos: a oligarquia canavieira em Pernambuco que, no século XVII, vive seu auge, e as praias urbanas do Recife, locais consagrados de turismo.
Podemos dizer que a caixa-preta da oligarquia canavieira pernambucana foi aberta no período em que a indústria açucareira entra em crise, a partir de meados do século XVIII. A combinação entre o desenvolvimento de uma técnica de manipulação da beterraba branca para produção de açúcar pelo rei da Prússia, Guilherme III, a expulsão dos holandeses, a abominação do trabalho escravo (cada vez mais inaceitável aos olhos do resto do mundo) e a concorrência do açúcar de melhor qualidade produzido nas Antilhas gerou o primeiro colapso da indústria canavieira no estado.
O mesmo acontece com os ataques de tubarão se multiplicando no Recife. A pesquisa pelas razões e busca de uma solução esbarra, derruba e abre uma caixa-preta formada por: criação do porto de Suape; desmatamento acelerado dos manguezais; toxicidade dos subprodutos da indústria petrolífera que cai dos navios; crescimento do mercado imobiliário (aterrando mais mangues); imaginário cinematográfico do momento de terror para surfistas e banhistas, causado por esse monstro sanguinário; perda simbólica de Boa Viagem, outrora a melhor praia urbana da cidade e parte do ritual democratizante de domingo.
Cada uma dessas rápidas interpretações de atores, vários humanos (como o rei da Prússia) e não humanos (como os dejetos da indústria petrolífera) podem se estender por redes muito maiores e mais complexas, que levam a compreensões diferentes das mesmas controvérsias.
Mas existe um segundo momento de abertura das caixas-pretas, marcado pela intencionalidade, que é nosso foco de interesse. É o momento em que a abertura se dá muitas vezes à força, principalmente quando a rede em questão foi estabilizada com um dispêndio de energia por parte da indústria, dos governos ou de mercados. O termo que usamos coloquialmente para essa tarefa de abertura da caixa-preta é hacking.
Essa forma de abrir, entender e reordenar a rede para depois fechá-la também é parte crítica da produção artística contemporânea.
Foi da desconstrução e reconstrução dessas redes que o artista e designer pernambucano Aloísio Magalhães fez seu trabalho, das experimentações com matriz de cordão, no Gráfico Amador (hackeando a antiga tecnologia da impressão), até a criação, em meio à ditadura civil-militar no Brasil dos anos 1970, do Centro Nacional de Referência Cultural, que, aparentando ser um programa de preservação da memória, foi na verdade o primeiro projeto de design nacional brasileiro.

Projeto gráfico de Aloísio Magalhães.
O mesmo se pode dizer do artista Daniel Santiago tentando comprar uma máquina de fax (mídia hoje magicamente obsoleta) no início dos anos 1990 e perguntando ao vendedor especializado se seria fácil abri-la, ao que seguiu um diálogo que beirava o nonsense, sobre a necessidade de abertura dessa caixa-preta tecnológica e seus termos de garantia. Já estava implícito, no trabalho do artista, a necessidade de reconfigurar essa rede.
Hoje essa prática se expande para novas áreas de conhecimento e dá a volta até o meio biológico. Se o aprendizado das linguagens de programação em meio digital possibilitou hackear, abrir e reconfigurar caixas-pretas em forma de software, o uso do que aprendemos com a Biologia Sintética pode abrir e reconfigurar o meio biológico. Surge assim um novo instrumento para tratar, com outra abordagem, velhas controvérsias.
O primeiro exemplo já aparece a partir de uma proposta conjunta entre o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R) e o Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA), ambos em Pernambuco, que articularam uma rede formada por atores de backgrounds variados como médicos, biossensores, engenheiros, robôs e a mosca conhecida como Drosophila melanogaster. Quando a ação conjunta consegue a estabilização dessa rede, temos uma nova virtuosa caixa-preta: o biossensor para diagnóstico prematuro do câncer de mama.
A própria iniciativa em si é uma boa caixa-preta (agora que é uma rede estabilizada) e das mais interessantes: a partir de uma rede emergente, descentralizada e não-hierárquica, formada por profissionais ligados ao LIKA e ao C.E.S.A.R, criam-se os nós que, no momento atual, ligam duas outras redes hierárquicas, formadas pelas estruturas institucionais dos dois centros de pesquisa. Nessa nova e ampliada rede, o conhecimento acumulado pelo C.E.S.A.R em robótica possibilita a criação de dispositivos que automatizam, aumentam a eficiência e diminuem o tempo de tratamento do material biológico aplicado ao biossensor, num processo que possibilita, em última instância, uma aplicação mais democrática do uso da biotecnologia, além de um potencial aumento de escala.
Com o uso desses dispositivos, é possível identificar marcadores ativos de câncer que levam a um diagnóstico precoce, fundamental para o tratamento do câncer de mama, que seria impossível com os métodos tradicionais, como a mamografia. Os primeiros testes dessa nova tecnologia já começaram, no Hospital Barão de Lucena, no Recife.
Se considerarmos que a informática é a programação de códigos em ambiente digital e a biologia sempre foi a programação de códigos em ambiente biológico, o momento que vivemos é o da criação de “compiladores” para a escrita desse código. O que vem por aí são técnicas que tornam a abertura e a construção de caixas-pretas biológicas cada vez mais acessíveis, dos kits de sequenciamento de DNA aos modelos de “Origami de DNA”.
Mas precisamos estar atentos. Neste momento, surge uma nova rede que está longe de se estabilizar. Ela é formada pelas universidades de biologia, pesquisadores médicos que também são programadores de códigos digitais, cursos de engenharia de software que olham para a biologia, conceitos éticos, a abstração chamada “mercado” e hackers.
Essa nova caixa-preta está em construção e este é um momento único para participar de sua escrita.

O que vem por aí são técnicas que tornam a abertura e a construção de caixas-pretas biológicas cada vez mais acessíveis.