No Brasil, a gambiarra dispensa apresentação. É atávica, inata, está no dia a dia e possivelmente desde sempre, ao menos desde o processo de colonização, que, afinal, foi fruto, em boa medida, de uma gambiarra da Corte Portuguesa. A palavra gambiarra é uma marca brasileira, conforme aponta o designer Rodrigo Boufleur, que defendeu na USP (Universidade de São Paulo) em meados da década passada a tese “Fundamentos da Gambiarra”. Ele destaca que há expressões semelhantes no inglês, como makeshift ou kludge, mas a conotação de gambiarra no Brasil vai além.

“O uso informal do termo como improviso denota uma propensão cultural relacionada ao que se costuma chamar de jeitinho brasileiro. É uma manifestação não exclusiva, porém típica e muito presente na cultura popular brasileira”, diz Boufleur em sua dissertação de mestrado “A Questão da Gambiarra”. Com efeito, se entendida como um remendo, um quebra-galho, uma improvisação para se resolver um problema ou a prática de reutilização ou requalificação de um determinado material para superar uma carência, é correto afirmar que as gambiarras partem principalmente de uma condição de precariedade mais comum em países em desenvolvimento. Vale ressalvar, contudo, que a prática é natural do ser humano, e mundial. Além das expressões afins em inglês (das quais life hack parece ser o verbete do momento), há termos que denotam mais ou menos o mesmo sentido na Espanha (apaño ou chapuza), na Índia (jugaad), na Colômbia (chatarra), no Chile (hechizo), em Portugal (desenrascanço), na China (jiejian chuangxin) ou na França (Systeme D ou bricolage). No Brasil, são também comumente e ironicamente utilizados os sinônimos “engenharia de emergência” ou “recurso técnico alternativo”.

MacGyverism: um dos sinônimos para gambiarra em inglês é originado do lendário personagem de um “enlatado americano” dos anos 1980.


 
Segundo o dicionário Houaiss, a palavra gambiarra tem etimologia de origem “contraditória e duvidosa”. Nos principais dicionários brasileiros, a primeira acepção para o substantivo é “uma ramificação ou extensão de luzes”. Apesar do evidente e difundido uso informal do termo no Brasil, visto como uma forma de improvisação, nenhum destes dicionários inclui qualquer acepção que se refira precisamente a este significado. Tecnicamente, uma ramificação desarmônica mas funcional de luzes parece ser o sentido original da palavra gambiarra, que, com o tempo, passou a se aplicar a qualquer solução precária para um problema. Várias dentre as cerca de 200 improvisações criativas analisadas por Boufleur têm essa característica de adversidade ou carência de materiais. Disso surgem tampas de xampu que viram lanternas traseiras de bicicletas, um disco rígido que vira uma lixa e um olho mágico que, acoplado ao celular, proporciona uma lente diferente. Um bom exemplo de gambiarra vem do fotógrafo paulista Daniel de Granville, que, para captar o som de aves, improvisou um guarda-chuva invertido. O princípio é o mesmo de uma antena parabólica: o guarda-chuva reflete o sinal sonoro e o concentra num ponto do cabo onde fica o microfone. “A ideia partiu do alto preço e da dificuldade de achar equipamentos”, conta.

O escritor e ativista cearense Ricardo Rosas, falecido prematuramente em 2007, afirma em seu clássico artigo “Gambiarra: Alguns Pontos para se Pensar uma Tecnologia Recombinante” que a transformação da precariedade pode ter dimensões sociais e “sanar uma deficiência, tentar curar feridas do sistema, trazer conforto ou voz a quem isso é negado”. Rosas defende que a gambiarra tem um sentido cultural muito forte, particularmente no Brasil. É usada para definir uma solução rápida e feita de acordo com as possibilidades à mão. “Esse sentido não escapou à esfera artística, com várias criações no terreno próprio das artes plásticas. É dessa seara que podemos captar mais alguns conceitos reveladores da natureza da gambiarra e o seu significado simbólico-cultural”, aponta.

“A gambiarra não se faz sem nomadismo nem inteligência coletiva” (Lisette Lagnado)

O discurso de Rosas se alinha com o da pesquisadora e curadora Lisette Lagnado, que ele inclusive cita em seu artigo. Em um ensaio sobre o tema da gambiarra nas artes brasileiras, “O Malabarista e a Gambiarra”, publicado na revista digital “Trópico” em outubro de 2003, ela sugere que a gambiarra é uma peça em torno da qual um tipo de discurso está ganhando velocidade. Articulação de coisas banidas do sistema funcional, a gambiarra, tomada “como conceito, envolve transgressão, fraude, tunga – sem jamais abdicar de uma ordem, porém de uma ordem muito simples”. O mecanismo da gambiarra, para Lagnado, teria, além disso, um acento político além do estético. Baseada na falta de recursos, a “gambiarra não se faz sem nomadismo nem inteligência coletiva”.

A gambiarra está igualmente muito próxima do conceito de bricolagem formulado por Claude Lévi-Strauss em “O Pensamento Selvagem”. Pensando o bricoleur como “aquele que trabalha com suas mãos, utilizando meios indiretos se comparado ao artista”, seu conjunto de meios não é definível por um projeto, como é o caso do engenheiro, mas se define apenas por sua instrumentalidade, com elementos que são recolhidos e conservados em função do princípio de que “isso sempre pode servir”. O bricoleur cria usando expedientes e meios sem um plano preconcebido, afastado dos processos e normas adotados pela técnica, com materiais fragmentários já prontos, e suas criações se reduzem sempre a um arranjo novo de elementos cuja natureza só é modificada à medida que figurem no conjunto instrumental ou na disposição final.

A diferenciação que Lévi-Strauss faz entre o bricoleur e o engenheiro é essencial para se entender a gambiarra – essa livre criação além dos manuais de uso e das restrições projetuais da funcionalidade – como uma prática essencialmente de bricolagem. Acima de tudo, para entender a gambiarra não apenas como prática, criação popular, mas também como arte ou intervenção na esfera social, é preciso ter em mente elementos quase sempre presentes. Alguns deles seriam: a precariedade dos meios, a improvisação, a inventividade, o diálogo com a realidade circundante local, com a comunidade, o reuso, o flerte com a ilegalidade, a recombinação tecnológica ou novo uso de uma dada tecnologia (hacking), entre outros.
 

O bricoleur cria usando expedientes e meios sem um plano preconcebido, afastado dos processos e normas adotados pela técnica.

Para além do “jeitinho”

Quando Rosas diz que a transformação da precariedade implícita na gambiarra pode ter dimensões sociais e tentar curar feridas do sistema, podem vir à tona exemplos como o “Gambiarra Favela Tech”, um projeto que tenta identificar talentos criadores em diferentes comunidades cariocas, criando uma rede entre eles e estimulando o potencial criativo e artístico dos envolvidos. O projeto é uma tentativa de devolver a cultura maker às suas origens: as oficinas e garagens onde talentos anônimos desenvolvem soluções para problemas cotidianos usando princípios de elétrica, eletrônica, informática e manualidades, acrescidos de uma boa dose de criatividade.

Smell Camera é um dispositivo para monitoramento da saúde desenvolvido pela estudante Manisha Mohan, do MIT. Essa gambiarra eletrônica digitaliza a respiração de pacientes. Foto: Gabriella Zak.

O potencial de intervenção social da gambiarra pode ser identificado não só no Brasil, mas no mundo, especialmente em países ou regiões com carência de recursos. Formado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), o engenheiro hondurenho José Gómez-Márquez passa o dia às voltas com prendedores, remendos, canos e peças de Lego. Ainda que pareça apenas um monte de traquitanas, são soluções médicas de baixo custo, que já ajudaram milhares de pessoas em países em desenvolvimento. Com um filtro de café, Gómez-Márquez bolou um instrumento para controlar medicação antituberculose. Fez um inalador com uma bomba de bicicleta. Transformou um helicóptero de brinquedo num inalador para asma e acoplou canos a um desentupidor de pia para produzir uma centrífuga portátil.

O potencial de intervenção social da gambiarra pode ser identificado não só no Brasil.

Nas visitas que faz a Honduras e outros países da região, Gómez-Márquez encontra cirurgiões e enfermeiros que seguem esse exemplo e também desenvolvem soluções criativas para seus problemas. “Queremos dar condições para que se tornem colaboradores”, diz. Para tanto, o engenheiro dirige no MIT o programa IIH (sigla em inglês para Inovações em Saúde Internacional), uma rede de laboratórios em 12 lugares do planeta – do Peru ao Paquistão. E as parcerias têm dado frutos. Na Nicarágua, sócios conseguiram fundos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para seus projetos. O país foi palco do lançamento do Medikit, um kit que auxilia profissionais da saúde a desenhar protótipos.

Video instalação “Elektronischer dé-coll/age Happening Raum (1968), de Wolf Vostell: precariedade com sucatas e eletrônicos. Foto: Marc Wathieu.

Artistas da gambiarra

Exemplos muito próximos e, ao mesmo tempo, ao redor do mundo atestam a ligação da gambiarra com o universo das artes plásticas. Formado em Belo Horizonte entre 2008 e 2015 e motor desta publicação, o Coletivo Gambiologia trazia no próprio nome sua fundamentação e, entre as várias frentes e possibilidades que a “ciência da gambiarra oferece”, explorou com proeminência sua dimensão artística.

Em âmbito nacional, alguns nomes de artistas que têm na gambiarra um de seus procedimentos também se destacam. Cao Guimarães desenvolve por mais de dez anos um projeto fotográfico que tem o tema como mote. Ao longo de sua trajetória, a série de fotografias “Gambiarras” já esteve exposta em inúmeros países. O paulistano Guto Lacaz também figura com destaque no trato com a gambiarra. É um artista-inventor que cruza os terrenos da ciência e da tecnologia, sobretudo quando constrói as suas máquinas e aparelhos paradoxais ou absurdos. É uma espécie de antiengenheiro que aplica seu know-how na desmontagem, na desorganização, na desconstrução do sistema produtivo industrial.

Outro artista que frequentemente faz da precariedade um preceito estético, o paraense Dirceu Maués navega na direção contrária das últimas tecnologias do mundo fotográfico e é hoje um dos maiores conhecedores no país da fotografia estenopeica, como também é chamado o registro com câmera pinhole (“buraco de agulha”). Seus aparatos óticos são artesanais e feitos com materiais diversos: lata, madeira, caixa de fósforo, embalagens velhas, latões etc. Há também os artistas que, em algum momento de suas carreiras, flertam com o universo da gambiarra.
É o caso de Jarbas Lopes, Efraim Almeida, Ducha e Marepe, que em 2003 realizaram a exposição coletiva “Gambiarra: New Art of Brazil”, na Gasworks Gallery, em Londres, na Inglaterra. “Poesia da Gambiarra” é também o nome de uma exposição realizada por Emmanuel Nassar entre 2003 e 2004 (Rio, Brasília e São Paulo), apresentando sua produção de desenhos, fotografias e murais que aludiam à precariedade.

Em âmbito internacional podemos citar o trabalho de Benjamin Gaulon, um artista, pesquisador e professor que lança trabalhos sob o nome de “Recyclism”. Sua série “Refunct Media” propõe uma colagem de dispositivos eletrônicos obsoletos, remontados em uma grande e complexa cadeia de elementos. Desde 2005 Benjamin tem também liderado workshops e ministrado palestras na Europa e EUA sobre lixo eletrônico, reprogramação de hardware e reciclagem. Os participantes de suas oficinas exploram o potencial das tecnologias obsoletas de forma criativa e encontram novas estratégias para a reciclagem de lixo eletrônico.
 

“Refunct Media” propõe uma colagem de dispositivos eletrônicos obsoletos, remontados em uma grande e complexa cadeia de elementos.

Quem quiser conhecer um pouco mais desse universo tem ao alcance dos olhos as exposições coletivas “Gambiólogos”, cujas primeiras edições aconteceram em Belo Horizonte em 2010 e 2014. As mostras apresentam uma panorâmica sobre a precariedade e o improviso cotidiano aplicado à arte, sem deixar de lado o ingrediente lúdico. É, em suma, uma oportunidade de aplicar arte e invenção a um cotidiano, não raro no Brasil de hoje, precário e improvisado.

“Refunct Media”, de Benjamin Gaulon.