
Desesperado, um colega psiquiatra um dia desabafou comigo: “só me aparece doido!”.
Não era verdade, ele estava cansado e às vezes até nós nos surpreendíamos com a alma humana. Há anos trabalhávamos na mesma clínica, cada um em sua sala, atendendo em psicoterapia os clientes que nos procuravam com os mais variados problemas, desde os mais banais aos mais complexos. Entretanto, todo mundo sabe que as profissões “psi” sempre foram cercadas de preconceitos e fantasias. O dono da lanchonete localizada no andar térreo de nosso prédio e que também era poeta, com sarcasmo provocava: “… eles eram doidos, pareciam normais, mas eram clientes do doutor, por isto eu sabia, eram doidos”.
Numa lenta manhã, alguns dias mais tarde, durante um intervalo entre clientes, bateram na porta de meu consultório. Era um sujeito baixinho, careca e com uma barbinha que lhe emoldurava o queixo e a boca. Muito simpático, me disse ter vindo ao prédio e por acaso havia visto minha plaquinha de psicólogo. Por impulso resolveu me procurar. Geralmente eu só aceitava clientes indicados, o que me possibilitava uma primeira triagem. Talvez por curiosidade e por estar disponível naquele momento, resolvi atender o sujeito que me disse seu nome e insistiu que eu o chamasse pelo apelido: “Mestre”.
Sua história era cinematográfica. Desde uma infância carente até a vida adulta suportada por um alcoolismo severo, havia cenas comoventes. Era artista, freelancer desenhista de joias, inteligente, bem informado, mas um pouco esquisito. Havia acabado de se separar de uma mulher louca, segundo ele, e tinha dois filhos que o preocupavam e o faziam temer o futuro. Surpreendentemente, nada disto era o motivo de sua consulta. O que lhe trouxera ali era uma compulsão atroz que o perseguia desde a adolescência e que ultimamente tinha se especializado. “– Como?” Perguntei sem entender. Aos dezoito anos, sem querer, aconteceu seu primeiro furto. Simplesmente sentiu uma vontade irresistível de colocar no bolso o cinzeiro de lata que estava em cima da mesa do Bar do Português, na esquina de sua casa. Experimentou sensações incríveis desde o momento em que pensou pegar para si o singelo cinzeirinho até o instante em que o surrupiou. Inicialmente sentiu uma atração misturada com medo e tensão e depois, alívio e euforia. Foi andando para casa morrendo de rir com sua travessura e não havia lugar para arrependimento ou dúvidas: aquilo tinha que ser feito, e conseguiu fazer bem feito. Para sua desdita, a coisa não parou e daí alguns dias “teve” que se apropriar ilicitamente de uma colherinha numa lanchonete, e da mesma forma foi obrigado por uma força interna a colecionar facas, gravatas, pentes, garrafas vazias, bonés, a parte de cima de biquínis, pés esquerdos de sandálias e outras coisas absolutamente inúteis. Apesar de ser uma pessoa geralmente deprimida, de um modo ou de outro conseguiu ir levando uma vida normal como artista e ativa na prática daquilo que para ele era um vício excitante. Sua mulher sempre se mostrou extremamente solidária e muitas vezes o ajudou a efetuar suas ações emocionantes protegendo-o para não ser flagrado.
Foi em 1983, durante a 17ª Bienal de São Paulo, que sua compulsão começou a se dirigir para objetos específicos. Havia lido Marcel Duchamp e entendera muito bem suas proposições fundadoras da Arte Contemporânea. Principalmente a parte dos readymades e sua definição, a qual coincidia impressionantemente com sua atividade artística marginal. Para ele estava claro, o que sempre havia feito era arte: descobrir objetos inúteis, comuns, anestéticos e apropriar-se deles, deslocá-los de seu lugar original. Por não saber que aquilo que praticava por impulso poderia ser arte, vivera até então na marginalidade mas, a partir de então, teria oportunidade de ser artista contemporâneo, reconhecido e valorizado. Foi pensando assim que, diante da obra minimalista de Piet Stockmans, montada no chão do 2º andar do pavilhão da Bienal, Mestre abaixou-se, pegou e colocou no bolso da jaqueta uma pequena xícara de porcelana branca sem alça com uma mancha azulada no fundo, a qual fazia parte de uma espécie de tapete montado pelo artista belga. Era o começo de uma série de furtos de pequenas peças componentes de obras de arte. A última, para fechar sua instalação de pequenos objetos de arte (furtados), havia sido na 29ª Bienal de São Paulo, poucos dias antes de nossa entrevista. Foi uma de suas proezas mais difíceis: uma intervenção cirúrgica na obra “350 Points Towards Infinity, de 2009”. Conseguira cortar o fio de prumo que sustentava um pêndulo obliquamente suspenso e qual, junto com outros 349, compunha a belíssima obra da italiana Tatiana Trouvé. Claro que correra sério risco de ser pego e pior, mal entendido, apesar de já possuir quase uma centena de pequenas peças, sua coleção de readymades “artísticos” ainda não havia sido consagrada pelo público, pelas instituições de arte e nem pelos críticos e ele poderia ser confundido com um ladrão.
Compreendi, então que o motivo de me procurar era um conflito que se estabelecera a partir do momento em que ele foi seduzido pela possibilidade de mostrar o produto de seus furtos em forma de arte. Sua exposição acabaria com sua proteção, sua capa de impunidade e ele poderia tornar-se não só um artista conhecido, como também um réu-conhecido. “Que faço, doutor? Me ajuda!” Havia sumido todo meu interesse por Mestre, senti repulsa e uma vontade de recitar Manoel Bandeira: “… a única coisa que posso fazer é mandar tocar um tango argentino”. Mas foi aí que meu cliente com horário marcado bateu à porta, aumentando minha ansiedade em parar com aquela entrevista que já durava duas horas. Abruptamente encerrei nossa conversa, dei-lhe meu cartão e disse-lhe para marcar uma próxima sessão, caso quisesse.
Recebi o próximo cliente, mas logo percebi que não tinha condições para atendê-lo. Dei uma desculpa e fechei a porta. Meus conflitos, que coincidentemente também envolviam questões com a arte, tinham sido atingidos. Eu havia acabado um curso de Artes Plásticas e decidira não seguir carreira, abandonar sonhos de sucesso, reconhecimento público e talvez até de uma Bienal, algum dia. Pensava em me dedicar apenas à construção de pequenos objetos inúteis pelo resto de minha vida. Fazer como Aureliano Buendia, personagem de Garcia Marquez em seu livro “Cem Anos de Solidão” que, no final da vida, se trancou em sua oficina a produzir peixinhos dourados, iguais àqueles três que eu mesmo fizera e que ficavam na mesinha ao meu lado. Nada disto, porém, explicava meu descontrole e a angústia que comecei a sentir no final da entrevista com Mestre.
Lembrei-me que foi logo depois de me levantar para tomar um copo d’água que aquela sensação começara. A partir daí, fui ficando incomodado, com raiva, sem entender meus sentimentos. Para piorar veio-me à memória, como um flash, o título grotesco de uma das poesias do meu amigo da lanchonete: “Seria o doutor um louco furioso?” Nem tanto. Ao olhar com atenção em cima de minha mesinha de apoio, descobri um possível motivo inconsciente para minhas reações emocionais: um peixinho dourado sumira!