Innovación es una palabra manchada.
Como revolución.1
Grey Filastine

Página do editorial do fanzine Critical Making, por Garnet Hertz.

Bons ventos sopram do Norte. Enquanto no Brasil, a cultura maker vem cada vez mais se consolidando com um discurso ipsis literis conforme a cartilha original norteamericana, sendo aceita como a “nova revolução industrial”2, exatamente de onde menos se espera – no caso, do extremo norte da América do Norte, no Canadá –, surge um projeto com enorme afinidade com a Gambiologia. Critical Making, ou “Fazer Crítico” é o nome de uma linha de estudos engajada com o movimento maker mas que traz, no entanto, uma reflexão crítica sobre os impactos dessa mais nova “revolução” sobre a vida cotidiana.

Segundo o verbete disponível na Wikipedia, Critical Making refere-se às atividades produtivas realizadas com as “mãos na massa” que conectam as tecnologias digitais à sociedade. Trata-se de uma proposta de aproximação da criação material a uma reflexão conceitual, reivindicando-se que o aprendizado obtido em processos do fazer são mais importantes que seus resultados.

A consequência seria uma reconexão de nossa experiência cotidiana com a tecnologia a um pensamento crítico. Os estudiosos da causa alertam que o distanciamento entre tecnólogos e artistas faz com que a tecnologia permaneça isolada de contextos de transformação social. Critical Making seria “a junção de dois modos distintos de engajamento no mundo – o ‘pensamento crítico’, considerado abstrato, explícito, discursivo, interno e cognitivamente individualista; e o ‘fazer’, tipicamente entendido como tácito, tangível, externo e orientado para a comunidade”3.

 

 

O termo foi cunhado em 2008 por Matt Ratto, professor da Universidade de Toronto, que a seguir fundou o Critical Making Lab, na mesma instituição. O laboratório rapidamente adquiriu simpatizantes e colaboradores prestigiosos. Dentre eles estão: John Maeda (pesquisador de design e tecnologia, com passagens pelo MIT Media Lab e Rhode Island School of Design), Golan Levin (engenheiro e artista norteamericano, considerado um dos mais importantes midiartistas da atualidade), Dale Dougherty (um dos fundadores da editora O’Reilly, CEO da revista Make e considerado o “pai” do movimento maker), Mitch Altman (inventor, hacker, palestrante e educador referencial da rede mundial de hackerspaces) e Reed Ghazala (a maior sumidade mundial em circuit bending).

O artista e pesquisador canadense Garnet Hertz, professor na Emily Carr University of Art and Design, em Vancouver, também tem se dedicado ao tema por meio da organização de publicações colaborativas dedicadas ao “Fazer Crítico”. Imagine uma Facta em formato fanzine de bolso, com 352 páginas e apenas 300 cópias impressas em máquina de xerox hackeada, encadernadas uma a uma pelo próprio editor e também postadas pessoalmente por ele.

Trata-se de “Critical Making”, a primeira publicação editada por Garnet em 2012, com a contribuição de 70 autores. Os artigos foram distribuídos em 10 volumes, cada um com um recorte temático4. Reunidos, compõem uma obra seminal que não necessariamente nega a cultura maker, mas problematiza a maneira como ela vem sendo aplicada mundialmente e propõe uma reflexão sobre os rumos da sociedade tecnológica. A coleção de fanzines é um ponto fora da curva em relação às publicações especializadas, para o bem e para o mal. Ao mesmo tempo em que sugere uma atitude punk “faça-você-mesmo”, radical em seu modo de produção e necessária em um momento em que a cena maker se espalhava para todo o mundo, o número limitado de cópias e o formato reduzido (com tipografia ilegível em alguns momentos) restringiam o acesso a um material tão relevante e cuidadosamente elaborado.

 

Adesivo distribuído junto aos volumes de Critical Making faz paródia à capa da revista Make.

 

Manual de instruções para libertação de Barbies, pelo coletivo Barbie Liberation Organization (1993).

“Disobedient Electronics” (2017), a mais recente experiência editorial de Garnet, a qual gentilmente recebemos uma das 300 unidades em primeira mão, ganhou não só mais uma cor (ao invés de somente P&B, o zine conta com um belo duotone de preto e magenta) e um fino acabamento em costura, mas principalmente uma boa pitada de radicalização sob o tema “Protestos”. A introdução já dá bem o tom da proposta. (veja acima)

 

O Critical Making Lab rapidamente adquiriu simpatizantes e colaboradores prestigiosos.

 

O conteúdo do fanzine coletivo, que conta com 24 colaboradores, além do próprio Garnet, é composto por projetos de arte-ativismo geralmente baseados em um suporte tecnológico e que, em sua maioria, trazem à tona questões caras ao momento atual.

É uma amostragem importante de obras que propõem maneiras alternativas de o design, a arte e a tecnologia contribuírem com a reflexão sobre temas fundamentais nas discussões contemporâneas, e que vão muito além de suas zonas de influência, afetando diretamente a vida das sociedades em todo o planeta: aborto, feminismo, economia, racismo, política, transparência, privacidade, ecologia…

 

O uso consciente das tecnologias é tarefa necessária em ambos os hemisférios do globo.

 

Apesar de os projetos apresentados serem muitas vezes excessivamente conceituais ou acadêmicos para uma publicação com proposta despojada, o conjunto de obras definitivamente faz valer a leitura. Os celebrados culture jammers do Barbie Liberation Organization (BLO), por exemplo, disponibilizam o manual de instruções para “libertação” de bonecas Barbie. Essa libertação, realizada centenas (há quem diga milhares) de vezes pelo grupo mundo afora, basicamente trata-se da troca do circuito de áudio entre Barbies “patricinhas” e bonecos “machões” da série G. I. Joe, e a posterior devolução de ambos às prateleiras de lojas de brinquedos. O resultado são Barbies que murmuram “a vingança é minha” e Joes declarando que “a praia é o lugar perfeito no verão”. Em “Disobedient Elecronics” está presente também o já clássico “Robotic Graffiti Writer” (robô grafiteiro) do Institute for Applied Automomy, grupo de arte-ativistas criado ainda na década de 1990. Por fim, um trio de pesquisadores em design, arte e engenharia da Universidade do Arizona apresenta a proposta de um forno solar que, tamanha simplicidade e baixo custo, poderia muito bem ser originário do Brasil ou da Índia, por exemplo.

“Critical Making” e “Disobedient Electronics”, apesar de contarem com poucos autores latinos e africanos, apresentam um conjunto de trabalhos, experiências e divagações que demonstram que a reflexão sobre o uso consciente das tecnologias é tarefa necessária em ambos os hemisférios do globo. Comprovam também que a prática criativa pode ser, sim, um poderoso instrumento para a construção de uma sociedade cujos habitantes não sejam somente consumidores, mas agentes atuantes de transformação da própria realidade. FP

 


1http://www.nativa.cat/2015/07/grey-filastine-innovacion-es-una-palabra-manchada-como-revolucion/

2Com as mesmas problemáticas questões estruturais das revoluções anteriores no que se refere à exploração do trabalho, ao esgotamento de recursos naturais, ao enriquecimento de poucos e muito, muito marketing – desta vez, no entanto, do tipo hipster ou “fofinho” (conforme proposto por Giselle Beiguelman) e conectado ao empreendedorismo e à inovação.

3https://en.wikipedia.org/wiki/Critical_making – tradução livre

4Conteúdo integralmente disponível em http://www.conceptlab.com/criticalmaking.