
“Uê, isso aí que você está chamando de gambiarra eu não conheço, não!”
Começávamos bem. A portuguesa voou mais de sete mil quilômetros para investigar a gambiarra e afinal está perdida nos substantivos. “A gambiarra que eu conheço é um fio com quatro ou cinco bocais. Isso sim é gambiarra. Agora as outras coisas… isso chama-se improviso, paliativo, quebra-galho…” Do topo da sua laje com vista para a comunidade do Adeus no Complexo do Alemão, Seu Silva enfrentava sereno as minhas perguntas mediadas por um aparato de filmagem montado com fita adesiva numa tábua de passar.
Era a segunda semana que ali estava recolhendo histórias sobre gambiarra. Enquanto estudante de doutorado, tenho investigado formas vernaculares de hacking e improviso, como o desenrascanço em Portugal, ou a jugaad na Índia. Por todo o lado se dá um jeitinho, mas o modo como essas práticas são reconhecidas e valorizadas varia muito de lugar para lugar.
Com a ajuda de pessoas como o Seu Silva, as percepções que tinha inicialmente foram se complexificando. Sim, na favela os recursos são muitas vezes escassos e as relações de propriedade e trabalho incrivelmente precárias, pelo que o improviso faz parte do dia-a-dia. Mas se a impossibilidade de adquirir certos produtos obriga as pessoas a darem um jeito, a verdade é que os motivos que levam à gambiarra não se esgotam na necessidade. Há também o tempo a menos e o tempo a mais, a falta de certos materiais e a relativa abundância de outros, as infraestruturas estatais e privadas que tardam em chegar, a especificidade ou urgência de um determinado problema, a apreciação da reutilização, ou até mesmo a zoeira e o prazer de ser inventivo. Todos estes motivos, por sua vez, se desdobram em intrincados mapas semânticos que refletem o que significa viver improvisando no Adeus.
Há mais de quarenta anos vivendo na favela, boa parte dos quais trabalhando como pedreiro e, mais tarde, construtor, o Seu Silva foi um dos maiores peritos no tema que encontrei. O acumular de experiência fez dele um taxonomista do improviso, alguém que distingue com nuance entre coisas como gatos, gambiarras e paliativos. Gatos, me ensinou, dizem respeito às ligações de luz, internet e TV a cabo feitas pelos moradores, ligações essas que, apesar da aparente desorganização, formam elaborados sistemas de distribuição de serviços na comunidade. Gambiarra é para ele uma técnica utilizada nos gatos de luz que serve para transformar um fio abastecedor em várias linhas elétricas. Nenhuma destas práticas é necessariamente improvisada. Já os paliativos – que incluem quebra-galhos e gatilhos –, esses sim, são a joia da coroa da inventividade e o verdadeiro segredo do negócio da construção.
Quando surge um imprevisto, quando você tem um trabalho encomendado mas de repente algo quebra ou está em falta e o tempo é limitado e os recursos também, o que é que você faz? Um paliativo. “Paliativo é tudo aquilo que você faz ali de provisório”, na hora. O cliente não tem que saber. (Aliás, é até melhor que não saiba.) Com o humor que caracteriza o assunto, Seu Silva partilhou comigo algumas das suas aventuras. Teve aquela vez em que o depósito de água do carro se estragou e ele consertou com uma garrafa. E aquela em que ele se esqueceu do garfo e acabou almoçando com uma colher que fez a partir de um balde de plástico. E aquela outra em que reparou o fundo duma caixa de água com o tampo duma mesa, e a outra ainda em que o cano da Dona Alva rompeu e ele salvou a situação com uma junta velha de bicicleta. Um bom construtor tem que dominar a arte dos cuidados paliativos.
Desde a nossa conversa que penso no termo. Enquanto especialidade médica, os cuidados paliativos ocupam-se de doentes terminais, daqueles que, não podendo ser curados, podem ao menos ser aliviados. Que coisas são estas que estão quebrando e vão sendo cuidadas pelas mãos de Seu Silva? Doutor da vida das coisas, tratando ruínas, adiando permanentemente a catástrofe. Como quem assiste um paciente incurável, Seu Silva emenda e remenda o chão, as paredes, os telhados, os canos e a luz, aliviando os efeitos negativos de uma condição sem modificar a sua causa. E embora a sua intenção é que funcionem como soluções temporárias, muitos dos seus paliativos vão ficando, ficando, ficando, até que viram permanentes, entrando no limbo das quimeras concretas.
O riso de Seu Silva ressoava pela laje afora, atravessando casas e ruelas inclinadas. Seu orgulho nos seus improvisos era evidente, mas cauteloso. “Paliativo não é bom, bom é você fazer a coisa certa”, repetia. Afinal de contas, a constante remediação do mundo é uma tarefa arriscada e a gambiarra é uma habilidade sem ética – pode ser utilizada para fins muito diferentes. E como que antecipando qualquer entusiasmo excessivo que eu pudesse ter com a criatividade da favela, ele frisava que nada daquilo era específico dali e que a necessidade de improviso, mesmo não sendo igual para todos, é uma condição universal. “A necessidade faz você ter que fazer certas coisas, você tem que improvisar, não tem jeito. Não é a favela… A vida em si ensina que temos que nos virar.”