“Trabalhador, construa sua máquina!”


 

Assim Ernesto “Che” Guevara proclamou ao setor industrial cubano, logo após o triunfo do movimento evolucionista que ele ajudou a liderar. O ano era 1961, e Cuba, cada vez mais isolada, estava experimentando um êxodo de empresas estrangeiras e investimento devido às políticas de mercado hostis do governo nascente de Fidel Castro. O início do agora famoso embargo dos Estados Unidos contra Cuba significou a saída em larga escala de recursos materiais de uma ilha que dependia fortemente do dinheiro e das importações americanos. Com restrições ao empreendedorismo e às empresas individuais, a economia atingiu o fundo do poço nos anos 1970.

Revolução

Talvez prevendo um futuro que exigiria autossuficiência, Guevara – então Ministro da Indústria – proporcionou o primeiro impulso ideológico para o que viria a ser um modo de vida para as próximas gerações de cubanos – que não teriam escolha senão construir e consertar, mais e mais, tanto as máquinas de fábricas do Estado quanto as de suas casas. Desde a restauração interminável dos icônicos Buicks 1950 até a criação de brinquedos para bebês feitos de latas de leite e feijão, fabricar bens não oficialmente disponíveis na ilha tornou-se uma habilidade essencial.

O recém-formado governo socialista de Castro nacionalizou as empresas estrangeiras e transformou os trabalhadores nos novos “patrões” do setor industrial. Ele impulsionou-os a assumir trabalhos de manutenção e a criar peças sobressalentes. As pessoas começaram a ver as máquinas estragadas como o maior inimigo do país. Uma furadeira sem um cilindro, uma serra de correia sem uma polia, um molde desgastado – esses artefatos mutilados aterrorizavam a sociedade como zumbis feridos.

As carências nas máquinas paralisaram as engrenagens da revolução. Os trabalhadores começaram a suprir as carências, o que fariam tantas vezes ao longo de tantos anos que, hoje, as máquinas têm mais peças feitas a partir dos reparos do que peças originais. As oficinas deram nomes para as engenhocas montadas ou construídas de zero. Algumas emperraram, outros não. Se um engenheiro cubano retornasse à ilha depois de 10 anos de exílio, não seria mais um especialista. De fato, apesar de seu treinamento, ele não reconheceria as traquitanas que cresciam sem controle, em uma prática grosseira de design. Qualquer coisa que ele soubesse sobre o funcionamento interno de uma tecnologia americana já teria sido substituída por uma
prática de design mais bruta, no entanto igualmente produtiva.

Esta primeira onda de “fazedores” deixou um rastro de invenção que mudou o curso da interação com a tecnologia em Cuba.

Os cubanos começaram a trazer essa mentalidade de reparo para casa, transformando seus eletrodomésticos em laboratórios. O mesmo engenheiro iria, durante o dia, consertar o motor de um avião a jato soviético MIG15 e, à noite, com a escassez de fósforos em todo o país, construir um isqueiro elétrico com uma caneta e uma lâmpada.

Aqui reside alguma ironia: a desobediência tecnológica – que a revolução promoveu como uma alternativa ao estancado setor produtivo do país – tornou-se o recurso mais confiável para os cubanos driblarem as ineficiências do sistema político estadual. Trabalhadores que haviam dedicado sua imaginação e engenhosidade a manter a revolução de pé foram, então, forçados a empregar esses atributos para levar a vida com necessidades mínimas.

Acumulação

A falta de confiança no sucesso da revolução transformou as casas cubanas em armazéns para todos os tipos de objetos – qualquer coisa que pudesse ser útil, mas não disponível em linha. O acúmulo de produtos levou os trabalhadores a questionar radicalmente os processos e mecanismos industriais. Eles começaram a olhar para objetos não com os olhos de um engenheiro, mas com os de um artesão. Todo objeto poderia ser potencialmente reparado ou reutilizado, mesmo em um contexto diferente do seu design original. A acumulação – neste caso um gesto automático – separava o objeto da intenção ocidental e do ciclo de vida para o qual estava destinado.
Isso é desobediência tecnológica.

Quando as pessoas se apegaram às coisas, elas também mantiveram os princípios técnicos e uma idéia de como elas se encaixavam. Em qualquer momento crítico, eles quebrariam a cabeça para encontrar a peça exata que poderia resolver o problema. Quando a energia caia, o ventilador quebrava, ou a cadeira rachava, a família se atentava para ouvir sussurros tecnológicos vindo dos pátios, de debaixo das camas ou de cantos obscuros dos quartos que guardavam pilhas de coisas velhas – fossem elas peças ou máquinas completas.

 

Coisas aparentemente insignificantes receberam novas utilidades. Os topos dos frascos de penicilina tornaram-se a melhor solução para válvulas em panelas de pressão. As latas de desodorantes provaram ser excelentes interruptores elétricos (feche a tampa para ligar a eletricidade!). Tubos fluorescentes defeituosos agora compõem molduras de imagens 3D. Um velho vinil de 33 rpm, cortado adequadamente, serviria como uma pá de ventilador – e seus inventores poderiam reproduzir cópias. Uma lâmpada de querosene Eagle velha e deteriorada reapareceu quando quedas de energia se tornaram comuns, e às vezes uma garrafa de leite ou tanque de gás funcionava como abajur. A nova aparência e nova função de cada criação tornavam-na única.

 

A acumulação separava o objeto da intenção ocidental e do ciclo de vida para o qual estava destinado.

 

Os cubanos, nessa época, conheciam apenas algumas marcas: TV’s Caribe e Kim, ventiladores Orbita e máquinas de lavar roupa Aurika. O mercado comunista dos anos 70 priorizou a produção com um fim social: por exemplo, foram distribuídas, em toda a ilha, cadeiras comissionadas pelo Estado. As pessoas, assim, acumularam bens idênticos, o que significou que métodos de reparo engenhosos apareceram por todo lado. Bandejas metálicas padronizadas nas escolas, por exemplo, mostraram-se apropriadas para a criação pela “classe fazedora” de um produto que até então não existia oficialmente na ilha: a antena de TV.

Ninguém sabe ao certo se a ideia inspirou cada pessoa individualmente ou se as pessoas ensinaram umas às outros. A bandeja era o único metal acessível para essa tarefa – mas seu uso secundário seria um resultado inevitável da mistura de necessidade, disponibilidade igual de bens para todos e uso criativo?

Outro objeto apareceu misteriosamente em muitas casas: a lâmpada de querosene. Construída com um recipiente de vidro cilíndrico – 13 cm de altura e largura – e dentro, mergulhado em querosene, um suporte de pavio feito de tubo de pasta de dentes. O recipiente, produzida pela Comecon – a já extinta aliança dos países socialistas – serviu com dupla finalidade, como reservatório de combustível e abajur. Isso transformou o recipiente mais conhecido de Cuba na lâmpada de querosene mais comum. Necessidade e recursos padronizados significavam soluções replicáveis ​​e desobediência tecnológica repetida.

 

Necessidade e recursos padronizados significavam soluções replicáveis ​​e desobediência tecnológica repetida.

 

Ao longo dos anos 1980, os subsídios soviéticos criaram uma década de relativa estabilidade econômica e, com isso, uma maior abundância de recursos. Depois, com a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, o governo cubano proclamou um “Período Especial” de racionamento e escassez extremos. Em 1993, uma nova lei desesperada finalmente permitiu – com restrições – empresas envolvidas em desenvolvimento e invenção. Uma nova era de empreendimentos criativos foi forçada a se iniciar.

RIKIMBILIS: Motocicletas gambiárricas tradicionais em Cuba.

 

Desobediência

No início do “Período Especial”, substitutos instantâneos, objetos e consertos provisórios permitiram que os cubanos se mantivessem até o fim da crise. Isto gerou a confiança do trabalhador na coisas feitas em casa: construção, transporte, roupas e dispositivos. Mas essas eram apenas soluções reparadoras de uma realidade material destruída ou insuficiente – e, finalmente, apenas a porta de entrada para a onda mais forte de criatividade revolucionária.

Ao reinventar suas vidas, surgiu uma mentalidade inconsciente. Como um cirurgião se torna dessensibilizado a feridas, os cubanos tornaram-se dessensibilizados para objetos projetados. Eles pararam de ver o propósito original dos objetos. Ao invés disso, as coisas tornaram-se amostragens de partes. Esta é a primeira expressão cubana de desobediência em sua relação com os objetos – um crescente desrespeito pela identidade de um objeto e pela verdade e autoridade que ela encarna.

Depois de abri-los, quebrá-los, repará-los e usá-los com tanta freqüência conforme sua conveniência, os “fazedores” acabaram desconsiderando os sinais que fazem dos objetos ocidentais uma unidade, uma identidade fechada. Os cubanos não temem a autoridade emanante que marcas como a Sony, a Swatch, ou mesmo a NASA, exalam. Se alguma coisa está quebrada, ela será consertada – de alguma forma. E se de alguma maneira ela mostrar-se útil para ainda reparar outros objetos, eles também poderiam salvá-la, em partes ou inteira. Um novo futuro espera.

Um objeto emblemático desta construção é o “ventilador-telefone”. Um técnico improvisado lembrou-se, quando a base do seu ventilador quebrou, que ele tinha guardado, em algum lugar, um telefone da Alemanha comunista quebrado. Ele lembrou-se disso porque a base do ventilador Orbit se assemelhava um pouco à forma piramidal prismática do telefone; O inspirado criador não estava interessado em associações ou significados, mas na analogia formal baseada no tamanho e na estrutura. O ventilador consertado, reconstruído e reapresentado era, ao mesmo tempo, um esboço das habilidades astutas do indivíduo, um diagrama da acumulação em sua casa e uma imagem de sua desobediência.

CONSERTO, ADAPTAÇÃO, INVENÇÃO: Cadeiras e bancos improvisados em Havana.

 

Ao reinventar suas vidas, surgiu uma mentalidade inconsciente.

Dentro do processo de conserto, reaproveitamento e reinvenção, três conceitos-chave denotam um elevado grau de subversão. Em primeiro lugar, reconsiderando o objeto industrial sob a perspectiva de um artesão. Em segundo lugar, negando o ciclo de vida tradicional de um objeto ocidental. E por último, substituindo os usos tradicionais por funções alternativas que atendam à demanda.

No sentido de restauração, a reparação legitima as qualidades de um objeto e permite que o “fazedor” se familiarize com ele de maneira distinta. Mas às vezes reparar significa criar uma ferramenta nova. Estes consertos são influenciados pelos processos mais radicais de reinvenção e reorientação.

Um caso digno de menção é o de um carregador para baterias não recarregáveis ​​desenvolvido em Havana em 2005. Enildo, o criador do dispositivo, queria recarregar as baterias para o aparelho auditivo de sua esposa. Ele poderia conectar seu novo carregador a uma tomada e, em apenas 20 minutos, fornecer 20 dias de duração da bateria. Como o Dr. Frankenstein criando seu monstro, Enildo juntou diodos de um rádio antigo, fragmentos de um condutor e pequenos pedaços de chapa, colocando-os sobre um pedaço de plástico retirado do rádio. O novo carregador, deslocado de seu propósito técnico original, evoca memórias de diagramas da classe de ciências. O objetivo era recarregar a bateria. A maneira como isso é feito tensiona a lógica técnica e comercial vigente das baterias.

O conserto, a refuncionalização e a reinvenção mostraram saltos de imaginação em oposição aos conceitos de inovação da lógica de produção em massa ocidental. E cada salto permitiu uma pequena adaptação à pobreza sob a qual a maioria dos inventores desobedientes vivia.

A desobediência tecnológica em Cuba não é somente sobre a transgressão da autoridade do design industrial e o modo de vida que ele projeta para seus usuários. Esta prática também dribla as agrangentes restrições do regime cubano. Todas as casas contêm invenções rebeldes: bandejas de almoço que recebem sinais de televisão; LP’s de salsa cortados soprando ar frio; latas de desodorantes que acendem e apagam luzes; e componentes elétricos agora recarregando pilhas não-reutilizáveis.

Mas a desobediência tecnológica não respeita limites. Ela se move para as esferas social, política e econômica que inspiram a subversão de seus próprios direitos. Ela mantém a vida fluindo para aqueles que a adotam. Ela interrompe o fluxo interminável de bens ocidentais e o constante impulso do comunismo na ilha. E ela mantém as mãos inspiradas para criar coisas que tornarão a vida de seus praticantes um pouco melhor.

A desobediência tecnológica não respeita limites.