“Perguntei a um homem o que era o Direito.
Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade.
Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o”.
Oswald de Andrade sintetiza, no “Manifesto de Antropofagia”, publicado na primeira edição, em maio de 1928, da “Revista Antropofágica” – que ele mesmo capitaneou ao lado de Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado –, o que, possivelmente, é a mais notável singularidade da cultura brasileira: a capacidade de deglutição de todo e qualquer material constituinte do ambiente, com senso crítico e capacidade seletiva, e a habilidade inata para transformar isso em algo novo, com traços da identidade nacional. Tudo com um caráter irreverente, panfletário e, ao mesmo tempo, poético.
Como em toda biografia que se preze, a de Oswald teve suas pinceladas de drama e romance, o que, naturalmente, se refletiu em seu legado intelectual. A ideia do “Manifesto de Antropofagia” vinha sendo de alguma forma gestada desde a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, 1922, mas só chegou ao papel seis anos depois, em função do que talvez fosse um simples carinho de sua esposa, Tarsila do Amaral, com quem se casara em 1926.
Presenteado por ela com o quadro “O Abaporu”, Oswald e Raul Bopp acharam de teorizar sobre a imagem (“aquele estranho homem pintado, de pés enormes fincados na terra, cuja pequena cabeça parece apoiar-se melancolicamente em uma das mãos, cercado por um ambiente seco e quente, tendo como testemunha apenas o céu azul, o sol e um misterioso cacto verde”, nas palavras da professora Maria Augusta Fonseca, em texto para a “Brasilianas”, da USP). Tal teorização, naturalmente, convergia com as proposições modernistas. Pois que a dupla chegou ao Manifesto.
A “Revista de Antropofagia”, que traz o “Manifesto” já na terceira página, foi lançada em São Paulo, divulgando editoriais pontiagudos, textos ficcionais, comentários fortuitos e artigos provocadores. De maio de 1928 a fevereiro de 1929 a publicação circulou como periódico, totalizando dez números, cada um com oito páginas. Numa primeira etapa, os editoriais assinados por Antônio de Alcântara Machado focalizavam questões de ordem social e política. Oswald e Bopp eram presenças constantes, como colaboradores.
No primeiro número, no meio da página que traz o “Manifesto”, está o desenho “O Antropófago”, de Tarsila, que segue as linhas de seu óleo sobre tela “O Abaporu”. No texto para a “Brasilianas”, Maria Augusta Fonseca detalha que “com o intuito de arejar ideias, provocar, agitar, propunha-se então a descida às nossas matrizes recalcadas, sem descartar o avanço técnico do mundo contemporâneo, e em paridade com as ideias de Marx, Freud e dos surrealistas’”.
Com a separação de Oswald e Tarsila em 1929, contudo, o próprio autor se incumbiu de tirar foco e importância do seu “Manifesto”. Evidentemente, não só pelo episódio passional. Como relata a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, “a partir dos anos 1930, com o agravamento da situação econômica e social, com o craque da Bolsa de Nova York em 1929, do qual Oswald de Andrade é uma das vítimas, e a instauração do período getulista (1930-1945), a questão do ‘moderno’ como tensão entre o nacional e o internacional toma outros rumos, sendo discutida em termos diversos, pelo menos até o fim dos anos 1960.
Oswald renega o ‘sarampão antropofágico’ durante os anos 1930, voltando a ele somente no fim da década de 1940. A ideia de antropofagia como procedimento estético só é conscientemente retomada em meados dos anos 1960, com a montagem da peça ‘O Rei da Vela’, pelo Teatro Oficina, e com o movimento tropicalista, entre 1967 e 1968”. O traço de identidade nacional ao mesmo tempo selvagem, anarquista e lírico que Oswald tinha identificado, afinal, mostrou-se mais duradouro do que ele próprio, talvez, pudesse imaginar.
O tropicalismo, com efeito, é uma reafirmação dessa capacidade intrínseca da cultura brasileira de absorver o que interessa – incluindo o seu semelhante d’além-mar e o que dele vier -, reprocessar e apresentar algo mais genuinamente próprio, verde e amarelo. Daí firmou-se como traço autóctone o que se diz por aí, no grande caldeirão do banquete canibal que é a web: “atualizar o ambiente artístico brasileiro, colocando-o em contato com as diversas linguagens das vanguardas europeias, e ao mesmo tempo voltar-se para a apreensão do Brasil, em um projeto consciente de criação de uma arte brasileira autônoma”, ou que “a reivindicação antropofágica podia ser vista como a metáfora do que devia ser repudiado, assimilado e superado em favor da independência cultural do país”, e que ela, a antropofagia, “lança mão da paródia, do riso e da anarquia para realizar a ‘canibalização’ cultural das nossas fontes primitivas reprimidas”; e mais: que “é com esse mesmo espírito de ‘canibalismo’ cultural e autonomia criativa, deglutindo informações tão díspares como a música pop e o samba, que o tropicalismo vai produzir suas canções e marcar, de forma original, sua presença no cenário cultural brasileiro”.
Na esfera da música, o desdobramento mais evidente, ou o contexto musical que mais herda esse legado antropofágico talvez seja o de Recife, Pernambuco, na primeira metade da década de 1990, com a eclosão do manguebit. Estão ali as referências do pop, do rock, do soul e do funk, da música eletrônica, importadas ou desenvolvidas nas mais insuspeitas periferias brasileiras, devidamente cozidas com os víveres dos mangues, com a batida do maracatu, com as cirandas, os cavalos-marinhos, a estética, a geografia e o sotaque que dão identidade à terra de seus criadores.
Decerto que foi sob inspiração antropofágica, direta ou indiretamente, que Fred Zeroquatro, líder do Mundo Livre S/A, escreveu o manifesto “Caranguejos com Cérebro”, alicerce teórico do manguebit. Ali fala-se em retroalimentação da matéria orgânica do mangue, o que, talvez, expresse uma nova realidade do que foi o cerne antropofágico. Para Oswald e os seus, estar inserido na modernidade significava estar aberto, com olhar crítico, selvagem, para o que ecoava do Velho Mundo e dos Estados Unidos. O panorama atual indica que a mão da via parece ter se invertido. O rock, o funk, o hip hop, o reggae, enfim, os gêneros e referências musicais “importados” de que os mangueboys se valeram em suas composições não são novidade – estão na música brasileira, devidamente absorvidos, desde Roberto Carlos e a Jovem Guarda, desde Tim Maia, Thaíde e DJ Hum, Gil. O que há de novo na música pop recifense dos anos 1990 é o Recife. O foco, aqui, é a música, mas vale, naquela cena e para o que dela derivou, em qualquer linguagem artística.
E cabe dizer que esse espírito antropofágico contemporâneo e de mão dupla estava ou está expresso no teatro de José Celso Martinez Corrêa, nas instalações de Hélio Oiticica, no cinema de Glauber Rocha, nos textos de Torquato Neto. Nas aspirações de Ariano Suassuna com o movimento armorial? Em Gaby Amarantos? Em Arthur Omar? Transformar um eMac obsoleto em espremedor de frutas (de preferência genuinamente brasileiras, como umbu, cajá, siriguela) seria uma expressão antropofágica?
Daniel Barbosa