“Desconfiar do estalo / antes de utilizá-lo
Mas se for impossível / de todo aboli-lo
Desconfiar do estalo / e transformar / o estalo em estilo”
Carlito Azevedo
Em artigo publicado no Caderno Videobrasil 2, Ricardo Rosas afirma que a gambiarra é “usada para definir uma solução rápida e feita de acordo com as possibilidades à mão”, o que tem “um sentido cultural muito forte, especialmente no Brasil”. Nos anos 2000, aconteceram vários festivais e publicações, e surgiram obras de artistas que reiteram a percepção de Rosas, um dos principais críticos de cultura digital brasileiros – além de midiativista atuante, que infelizmente faleceu de forma prematura. De Jarbas Lopes a Fred Paulino, passando pelos coletivos Re:combo e Metareciclagem, ou nomes como pan&tone e Paulo Nenflídio, uma parte significativa da produção que inaugura o século XXI explora o improviso transformado em estilo.
Mas seria um engano considerar este “sentido cultural”, que destaca-se no Brasil, como algo particular do país. Em âmbito internacional, práticas como o DIY, a eletrônica de garagem, o circuit bending e o hacking exploram a reutilização, a reconfiguração, o deslocamento e a ressignificação como ponto de partida para reinventar a relação entre linguagens e tecnologias. Neste contexto, o remix e a gambiarra são algumas das formas com que mundo contemporâneo busca equalizar os exageros de um capitalismo fora do controle, num momento de reconfiguração intensa da geopolítica internacional.
Setenta e seis anos depois que Oswald de Andrade leu, na casa de Mário de Andrade, para seus colegas de modernismo, o “Manifesto Antropófago” – publicado naquele mesmo ano de 1928 na “Revista de Antropofagia” – um acontecimento disperso propõe atualizar suas ideias, em um Brasil que passava das reminiscências da ditadura militar à eleição de Lula para a Presidência.
Em 2004, o Digitofagia propôs discutir estas gambiarras digitais num formato de compartilhamento entre pares e sem hierarquia, que reuniu (algo mais raro do que deveria ser) intelectuais, ativistas, participantes de movimentos sociais, artistas, críticos, gestores, etc. Idealizado e organizado por Ricardo Rosas, Giseli Vasconselos, Lucas Bambozzi, Pixel, Ricardo Ruiz, Sandra Terumi e Tatiana Wells, e articulado a partir de uma rede de discussão que gerou um livro eletrônico durante o processo (o “Digitofagia Cookbook“), foi um momento de síntese e prospecção: ao mesmo tempo em que agrupou uma série de discussões sobre a relação entre cultura digital, arte, política e antropofagia (desdobrando um foco de debates que, desde o Midia Tática Brasil, em 2003, se organizava em eixos de discussão cada vez mais estruturados), estabeleceu um ponto de partida para encontros como os vários Submidialogia, e exposições como Gambiólogos (2010).
Não cabe eleger fatos ou obras marcantes deste período em que os desejos comuns espalham-se por espaços públicos cada vez mais escassos, e os debates acirrados servem como uma espécie de prelúdio à polarização de um mundo em que Primavera Árabe e movimentos Occupy dividem a arena com o fantasma de SOPAs, PIPAs e afins. Os ecos da antropofagia na cultura digital reverberam como afetos de micropolítica, num registro em que grupos e posturas importam mais do que tais ou quais partes (e que os acontecimentos e disrupções surgem como formas de ressignificar o fluxo espesso da rotina, um pouco como em Maio de 68, mas de forma difusa, e desinvestida de discursos centralizadores).
Se fosse possível contar a história contemporânea em pílulas, certamente “menos é mais” e “não confie em ninguém com mais de 30” definiriam momentos chave. Talvez, diante da superexposição cotidiana e da batalha por visibilidade numa rede em que não se mede qualidade ou credibilidade (mas o número de seguidores), caiba remixá-los como um slogan síntese para o século XXI: se menos é mais, não confie em ninguém com mais de trinta amigos no Facebook.
Não por acaso, ao final de uma década de devoração, o anonimato tornou-se uma bandeira e um diferencial em meio à saturação de perfis, conexões e cutucadas. Ponto arbitrário de uma trajetória que só é possível entender coletivamente, navegando pelas páginas que registram os vários e múltiplos lances de devoração espalhados pela Internet (para isso, vale conferir os sites como Midia Tática Brasil, Digitofagia, Centro de Mídia Independente, Baixa Cultura.org e Gambiologia.net, entre outros). Seria paradoxal, neste contexto, resgatar um momento tão marcante quanto pouco lembrado desta trama que envolve antropofagia e tecnologia (ou, jogar nele alguns holofotes resultaria em desastrada anti-homenagem, que toma como parâmetro as mesmas regras de visibilidade que levaram ao formato do anonimato como crítica do contemporâneo)?
Em 21 de Agosto de 2003, é lançado o LURC. A Licença de Uso Completo do Re:combo propõe um documento que “tem como objetivo criar uma base de trabalho liberal que seja coerente com a nossa ideia de Generosidade Intelectual, em detrimento à Propriedade Intelectual”, remetendo a um “tempo em que a música era tocada apenas por prazer, e a sua criação, até então, era coletiva, fosse nas aldeias européias do século XVI ou nas ocas cerimoniais do Brasil pré-1500”. Uma versão dos debates sobre direitos autorais em sintonia evidente com o matriarcado de pindorama, de bárbaros tecnizados, oswaldiano.
Não fazem dez anos que os corredores do MIS abrigaram alguns dos debates mais marcantes sobre os elos entre passado, presente e futuro de um Brasil marcado pela lógica da devoração antropofágica, em que “só me interessa o que não é meu”. Mas qual o sentido deste interesse pelo “que não é meu”, em um país que critica (de forma legítima, consistente e necessária) a retirada do Creative Commons de um site de Ministério, mas não discute porque uma licença semelhante e contemporânea, inventada no nordeste do país, raramente é lembrada, nas histórias recentes sobre a cultura digital pontobr? No Brasil 2.0, de pré-sal e prosperidade anunciada, é preciso pensar como seria a antropofagia 2.0. Tupi or not tupi ainda é uma questão.
PS.: Vale apontar um elemento significativo para pensar a relação com o outro, marcante no Brasil tanto sob o signo da Antropofagia quanto no “Nacional por Subtração” de Roberto Schwartz: a fase antropofágica de Oswald de Andrade surge em suas viagens à Europa, quando conhece a revista Canibale, editada por Francis Picabia, num momento em que as vanguardas artísticas exploravam o primitivo e o estrangeiro como formas de buscar discursos diferentes da linguagem européia predominante.
- Caranguejo Solar (2009), de Paulo Nenflídio, é parte de uma série de “animais tecnofágicos”
- mimoSa, projeto da Rede Metareciclagem: computador ambulante que “reapropria-se criativamente da tecnologia para revelar lugares, pessoas e suas histórias”
- mimoSa, projeto da Rede Metareciclagem: computador ambulante que “reapropria-se criativamente da tecnologia para revelar lugares, pessoas e suas histórias”
- Das Coisas Quebradas, instalação de Lucas Bambozzi (2012): máquina que devora celulares
Confira abaixo o texto “Nacional por Subtração”, de Roberto Schwartz.