“É o estilo de época de uma época sem estilo”. (Laura Erber)

O que acontece no instante exato da morte? Dentre as mais variadas interpretações de cunho científico, religioso ou esotérico para essa questão que inexoravelmente nos acompanha, uma me parece a mais singular: há quem acredite que o homem reveja flashes da própria vida, em altíssima velocidade e cronologia inversa. Como um rewind de nossa história completa, é a chamada “experiência de quase-morte”. Segundo essa suposição, precisamente no evento mais único, inexplicável e extremo da existência, a vida parece contradizer-se: são de repente invertidas as lógicas da experiência, do envelhecimento, da maturidade, do tempo, para voltarmos ao que éramos no início. Um retorno solitário e derradeiro à nossa origem mais pessoal.
De forma semelhante, esta publicação, que em seu primeiro número abordou o Apocalipse – óbito eminente do universo – e se autodeclarou como “nascida já morta”, agora volta seus olhos ao passado. Seguindo nossa proposta de abordar, de forma livre e com a participação de uma rede de colaboradores, temas amplos que relacionam-se de formas distintas com a ideia de Gambiologia, desta vez abordaremos as práticas de acumulação e colecionismo: formas do homem relacionar-se com o tempo a partir da aquisição e guarda de objetos materiais. Definitivamente não apresentaremos esses temas a partir da amostragem de personagens exóticos com a mania de guardar objetos.
O que esta edição da Facta investiga é como o hábito de acumular parece estar se tornando, no mundo contemporâneo, cada vez mais comum. E mais: de que forma antiguidades, velharias, refugos descartados, objetos supostamente sem perspectiva de vida-após-a-morte têm sido matéria prima e inspiração valiosas para a criação de obras de arte e peças de design.
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A relação do cidadão contemporâneo com o tempo soa confusa. Somos obrigados, hoje, a imprimir ao nosso cotidiano um ritmo mais acelerado que o humanamente razoável.O presente passa tão rápido, que é improvável não confundi-lo com memórias do passado e planos para o futuro.
Já em 1967, Guy Debord1 anunciava o que chamou de “tempo cíclico”. Segundo ele, há uma relação inseparável entre a “história humana” e a “história natural”. A segunda só existiria efetivamente na medida em que fosse compreendida pela primeira: “a tempo-realização do homem, tal como ela se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo”. Sendo assim, quanto mais uma sociedade se conscientiza sobre a passagem do tempo, mais ela o nega, tratando-o não como o que passa, mas o que regressa. Em contraponto, a burguesia “senhora do poder”, estaria ligada ao tempo do trabalho. O imperativo da produtividade, do acúmulo de mercadorias e capital faria surgir a ideia de tempo irreversível, unificado mundialmente. “O triunfo do tempo irreversível é também a sua metamorfose em tempo das coisas, porque a arma da sua vitória foi precisamente a produção em série dos objetos, segundo as leis da mercadoria.”
Mas acontece que as mercadorias, hoje, são descartáveis. Bauman (2005)2 define nossa sociedade como regida por uma “vida líquida” que “projeta o mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como objetos de consumo, ou seja, objetos que perdem a utilidade (e portanto o viço, a atração, o poder de sedução e o valor) enquanto são usados”. E acrescenta: “estes têm uma limitada expectativa de vida útil e, uma vez que tal limite é ultrapassado, se tornam impróprios para o consumo”. Ou seja: o tempo, agora ditado pelas regras da produção em um contexto de economia especulativa, literalmente nos escapa pelas mãos.
Linkando as análises de ambos os autores, fica a questão: a irreversabilidade de nossa história estaria, então, diluída num instante de tempo perdido?
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Neste século acelerado por demais, de ritmo pautado por corporações e suas estratégia de avanço tecnológico e obsolescência programada, podemos observar dois fatos recorrentes, que talvez sejam tão-somente escapes para compensar nossa provável relação mal resolvida com o tempo: a ansiedade em vislumbrar o futuro e o saudosismo de cultuar o passado.
No primeiro caso, a insaciedade pela atualização nos impele, mesmo de maneira inconsciente, a estar sempre antenados com “o próximo modelo”. Seja o mais novo smartphone do mercado, a versão mais recente de um app ou a tendência para vestir na próxima estação, vivemos curiosos pelo que há por vir, antecipando o momento futuro e não nos permitindo viver plenamente a experiência do hoje. “As preocupações mais intensas e obstinadas (…) são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de reinícios…”.
Por outro lado, me parece que o ser humano insiste, paradoxalmente, em incorporar os rastros do antigo em seu cotidiano. São exemplos vários: das câmeras digitais que reproduzem filmes analógicos ao dia das crianças online, quando nos pegamos divertidos a postar fotos da infância. Das roupas que já são produzidas envelhecidas à valorização do mercado de móveis antigos reformados. Da moda “chique” da taxidermia decorativa à celebração do design retrô. E finalmente, o hábito cada vez mais usual de cidadãos dos grandes centros urbanos de colecionar ou acumular objetos raros, únicos, exclusivos. Quem não tem ao menos um conhecido que gosta de “juntar trecos”, sem razão aparente? Quantos de nós não consegue evitar o gesto de, ao passar por uma caçamba cheia, conferir rapidamente se não há algo que poderia ser (in)útil em casa?
Em uma época em que nossas memórias estão digitalizadas nas galerias das redes sociais, tornando-se imediatamente passado com um simples gesto de scroll, a acumulação soa como compensação de um vazio resultante da vida líquida. Se não há como agarrar-se ao tempo, quem sabe juntar objetos não seja uma forma desesperada de resgatar memórias…
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O ato de colecionar confunde-se com a passagem do homem pela Terra. Desde muito cedo até os dias atuais, o ser humano tem deixado rastros por onde passa: pinturas em cavernas, nomes em árvores, graffitis nos muros de uma cidade e mesmo livros e filmes, por exemplo.
Mas nossa experiência é marcada não só pelo que deixamos, mas também pelo que coletamos e guardamos. Sejam itens materiais – objetos que, por motivos diversos e inexplicáveis, simplesmente queremos guardar – ou lembranças impalpáveis, memórias. Assim como faz um contador de histórias que declama seus “causos” incorporando o saber de seu tempo ao de seus antepassados, a vida é, acima de tudo, uma experiência de acumulação. De coisas e de afetos.
Catar, agrupar, organizar objetos são gestos de retenção de nossa experiência passageira no mundo. As coisas valem como chave de entrada para a memória e grande parte das vezes, o apego a um objeto deve-se tanto mais pelas lembranças a que ele remete do que por seu valor monetário. As coleções nos transportam ao mundo imaginário de um passado inacessível: a recordação vaga de um país, a saudade de alguém que partiu, o sabor de um prato ou de um drink a dois. Há quem colecione de tudo: selos, moedas, imagens antigas, brinquedos estragados, lâmpadas queimadas, insetos, tampinhas de garrafa, rolhas, sachês de chá… Há também quem colecione inimigos, rancores, frustrações amorosas, listas que só fazem crescer, ideias não realizadas… Há quem colecione todas as coisas citadas e outras mais. Botonismo, adesivoterapia, durexia, ruinologia: novos substantivos para incontáveis manias, patologias e suas variações.
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A reutilização de objetos acumulados é pertinente à criação artística contemporânea. Além da inevitável questão da sustentabilidade (muito conveniente para o marketing corporativo, mas pouco colocada em prática), nas mais diversas esferas da indústria criativa os ciclos estéticos vão e retornam. Muitas vezes, ser reconhecido como contemporâneo é nada mais nada menos que saber ressignificar, ou samplear, referências de épocas distintas, relacionando-as com questões da atualidade.
De forma mais específica, no repertório da Gambiologia utilizamos objetos velhos, incorporando neles novas ou precárias tecnologias para que “renasçam” como novidade. E já que nas obras usamos basicamente objetos de origem industrial descartados, um mix estético de diferentes épocas nos parece mais rico e atrativo visualmente. Porque as produções da indústria de hoje são excessivamente limpas, parecidas demais entre si, descartáveis, serializadas…
Por tudo isso, acumulamos acervos de muita coisa. No entanto, mais do que somente guardar objetos, nos interessa transformá-los.No arcabouço gambiológico, para além do valor estético, funcional e monetário de uma peça única, importa a sua transfiguração em uma ideia. O resgate e a refuncionalização de uma antiguidade, de um objeto descartado, de um refugo sugerem um jogo com o próprio processo de memória: evidenciar um desajuste ante o tempo, através de um deslocamento. Para além do colecionismo usual, baseado em processos de pesquisa/posse/acumulação/arquivo/preservação, entendemos que a transformação de tais objetos em outros lhes subverte a aura intocável e reconfigura o seu valor. “Estragar” um objeto raro pode ser simplesmente trazê-lo para o agora, não só potencializando sua carga de memória ao incorporá-lo ao momento presente mas, principalmente, unindo tempos instransponíveis.
Uma ação sobre a acumulação, que se transforma em obra.
“A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez –
e tu com ela, poeirinha da poeira!” Nietzsche
1 “A Sociedade do Espetáculo”, 1967.
2 BAUMAN, Zygmunt. “Vida Líquida”, Editora Zahar, 2007.