Todas as coisas são nascidas desta única coisa por adaptação.

 

 

A formação da cultura brasileira e de outros países de terceiro mundo tem sido, desde sempre, influenciada pela necessidade de lida com certa carência material, dificuldade na aquisição de recursos e restrito acesso à educação. São altos os preços cobrados por produtos tecnológicos, livros, eventos culturais… Mas o fato é que tal carência nos impeliu a criar um senso peculiar de improvisação, cujo resultado muitas vezes atende pelo nome de gambiarra. Essa prática, tradicional no país e tão ilustrativa do que se entende por “brasilidade” (ao ponto de ser confundida frequentemente com o maldito “jeitinho brasileiro”), vai, no entanto, muito além do senso comum, das pequenas soluções necessárias no cotidiano, como um bombril colocado na antena para melhorar o sinal da TV ou as alças das havaianas arrebentadas presas com clipes.

A gambiarra, se pensada de forma mais livre no contexto contemporâneo, aplica-se a inúmeras outras paragens e universos, como da tecnologia (na programação de software, por exemplo, é comum o uso de recursos menos formais para solução de bugs) ou das artes plásticas. Este último, especialmente, talvez pela demanda excessiva por tecnologia e interatividade, passa a incorporar cada vez mais soluções precárias, buscando privilegiar a sensorialidade mais do que soluções estéticas “bem acabadas”. E com a carência de recursos sendo, ao menos temporariamente, superada por nosso espasmo de desenvolvimento econômico1, o fato é que a gambiarra me parece hoje (e não só na arte brasileira) muito mais uma opção. Opção essa que, naturalmente dialogando com as tecnologias deste tempo, desponta talvez como uma forma de desprendimento criativo, ou libertinagem visual, que parte das estratégias de adaptabilidade citadas acima para tensionar o status quo das Artes ao mundo real.

Somado a isso, vivemos um período de prováveis mudanças na geopolítica global e de ansiedade em relação ao futuro do planeta, seja devido às alarmantes condições climáticas, à emergência de conflitos locais reverberados pelas nações mais influentes – que validam a ideia de “terrorismo” –, ou às previsões catastróficas, do frustrante bug do milênio ao fim do calendário Maia. Nesse contexto, enfim, pode ser que o Brasil, junto com o resto da periferia global, possua diferenciais adaptativos e criativos que nos possibilitem finalmente converter o complexo terceiromundista a uma situação de “recolonização” às avessas2. Seria essa nossa habilidade com o improviso o grande diferencial para uma situação extrema, como por exemplo o fim do mundo?

Facta nasce no dia 1º do mês de dezembro do ano de 2012 DC. A poucos dias, segundo alguns, da data derradeira no calendário Maia. O nome destapublicação vem do ditado em latim: “Facta non verba”, traduzido em inglês como “deeds, not words” e em português do Brasil para algo como “ações, não palavras”3. Apesar da sonoridade próxima a “facto” (fato), que por sua vez forma a expressão “de facto” (“na prática”, ou “na teoria”), esta publicação não pretende ser um informativo de caráter jornalístico. Propomos aqui uma publicação ensaística sobre Gambiologia, ou mais precisamente, o que dela deriva4. O que quero dizer é que, apesar de Facta ter surgido a partir das ações do Coletivo Gambiologia (que formo junto com Lucas Mafra e Ganso5) e tratar de temas que diretamente tangenciam nossa produção, ela não se pretende um projeto autoreferencial. Pelo contrário, o que nos interessa aqui é pensar a gambiologia como cena, território de influência, ou zona autônoma temporária.

Este projeto surge como consequência direta da exposição coletiva Gambiólogos (2010), quando reunimos em BH algumas dezenas de artistas apresentando trabalhos no conceito: “a gambiarra nos tempos do digital”. Foi uma experiência rica para compartilhar ideias comuns com um segmento da arte brasileira atual que se vale da precariedade como recurso, em um contexto digital. Uma produção que, diga-se, ainda é majoritariamente exibida apenas em um circuito dito “alternativo” (é curioso observar como no Brasil o que é “arte contemporânea” raramente se mistura com a “arte digital”). Assim, na Gambiólogos houve uma intenção curatorial de agrupar os trabalhos a partir de seu formato, método de produção, materiais, recursos, que remetiam diretamente à cultura digital e/ou da gambiarra. É essencialmente nisso que esta publicação avança. Pretendemos agora reunir parceiros de outras práticas criativas, que vão além da atuação em galerias com seus “objetos”, ou que tampouco se autointitulam artistas. Para tanto, convido colaboradores de áreas diversas, como mestres de eletrônica popular, comunicólogos, poetas, ilustradores, fotógrafos, arquitetos, ativistas, artesãos ou simplesmente curiosos com a Gambiologia. Em quatro edições (a revista já nasce morta?), abordaremos de forma livre um tema específico, ou provocação, que costurará práticas tão diversas, sempre tangenciando a cultura da gambiarra neste nosso tempo mediado – e pautado – pela tecnologia. Pensaremos de forma mais ampla a gambiologia que é substantivo comum e internacional: um inusitado e peculiar abecedário, ou framework, como bem apontado pelo amigo João Wilbert.

Ciência • Fantasia • Tecnologia • Eletrônica • Faça-você-mesmo • Cotidiano • Precariedade • Gambiarras • Design sustentável • Cultura pop tupiniquim • Colecionismo • Pirataria • Teoria e prática hacker


Curiosamente, esses conceitos parecem fazer sentido especial nos dias de hoje, em que o fim dos tempos parece estar mesmo próximo. E se considerarmos que ADAPTABILIDADE tem a ver com SOBREVIVÊNCIA, esse repertório pode ser o kit de primeiros socorros para o Apocalipse, mito habitante do imaginário humano há milênios. O Livro da Revelação na Bíblia6, em todo seu simbolismo, contém passagens que seriam nefastamente aplicáveis hoje como: “e toda a terra, maravilhada, seguia a besta”, “e ninguém pode comprar ou vender se não tiver a marca, ou o nome da besta, ou o número do seu nome”, “aqueles que adoram a besta e sua imagem (…) não terão descanso dia e noite”, “os comerciantes da terra se enriqueceram com seu luxo desenfreado”. E uma última, mais gambiológica: “a cidade não precisa de sol nem de lua para ficar iluminada” (o que me faz lembrar da satisfação que foi saber que, em meio ao furacão Sandy em NYC, amigos passaram horas tendo como única fonte de luz a lanterninha feita de embalagem MM’s da Gambiologia, um dos projetos presentes nesta edição).

Mas seja pelo incômodo das pessoas com o rumo destrutivo da nossa sociedade, ou por um instinto naturalmente humano de curiosidade com o incerto, o fato é que o apocalipse é pop. Ele está por toda parte. Centenas de artistas já interpretaram o fim dos tempos, de formas diversas, desde a idade média. É célebre a gravura “The Horsemen of the Apocalypse”, de Albrecht Dürer (1497-98), mostrando os quatro cavaleiros – ou seriam pilotos? Ninguém menos que a Tate Modern exibiu, durante três meses entre 2011 e 2012, a exposição “Apocalypse”, do obscuro pintor oitocentista John Martin. Chegamos ao ponto de a sentença “Risks to civilization, humans, and planet Earth” existir como verbete da Wikipedia. Isso sem contar o fato de respeitados filósofos contemporâneos não se conterem em refletir – pertinentemente, diga-se – sobre o assunto. Como Agamben, em Profanações (2007)7: “Tudo o que agora nos aparece envilecido e de pouco valor é a fiança que deveremos resgatar no último dia, e quem nos guia para a salvação é precisamente o companheiro que se perdeu pelo caminho“. E mais diretamente no que dito por Žižek (2012)8: “O sistema capitalista global se aproxima de um ponto zero apocalíptico, e seus ‘quatro cavaleiros do Apocalipse’ são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual e a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais.”

Mas o sucesso absoluto do fim do mundo não vem só das interpretações catastróficas sobre calendários, ou previsões proféticas deste ou daquele, mas também da constatação cotidiana de que as coisas no mundo andam mesmo estranhas. Furacões que outrora despontavam secularmente se repetem e se fortalecem a cada ano, chegando cada vez mais perto dos grandes centros. O calor é crescente por todo lado, mas poucos estão dispostos a abrir mão do conforto de seu carro do ano. O desenvolvimento tecnológico chegou a tal ponto que somos, por um lado, seduzidos pela sereia da conexão interplanetária, mas por outro é comum observar uma insatisfação generalizada com a obrigação da conexão fulltime. São mais difíceis o isolamento, a introspecção, e a privacidade é cada vez mais uma falácia. A necessidade de manter-se atualizado em uma ciranda de consumo, além de estimular bolhas econômicas por todo lado, reafirma um modus perverso de globalização.

Finalmente, e por tudo isso, o fim dos tempos soa gambiológico por demais, e por isso o tema desta primeira edição é “Gambiologia, a Ciência do Apocalipse”. Não se pretende aqui algum consenso. Pelo contrário, incentivaremos o compartilhamento de ideias não-conclusivas como forma de geração de um imaginário visual. Além de pautas próprias, teremos referências, inspiração, conteúdo nonsense e principalmente proposições abertas aos colaboradores, que embarcaram na provocação e arriscam temas e conteúdos de forma totalmente livre. E um conteúdo exclusivo online, complementar à versão impressa.

Facta atreve-se a ser uma “revista de invenção”. Penso que os textos sobre arte e cultura, talvez especialmente do lado de cá das Minas, andam impregnados demais de academicismo, citações filosóficas, catedráticas, metodologias… Acabam assim por carecer de certo tipo de PROVOCAÇÃO e RISCO, que a meu ver são imprescindíveis, em se tratando de criatividade. A própria arte contemporânea parece excessivamente conformada em validar um discurso conceitual que vem de fora, seja do ambiente curatorial das galerias ou dos guichês da lei de incentivo. Facta faz questão de ser abundante em incertezas, viagens e contradições. A começar deste editorial. Que me perdoem nossas “cabeças de planilha”, mas viver no século XXI exige certa dose de exoterismo.

Disso sairão admiráveis adaptações das quais aqui o meio é dado9.

 

 


 

1 Fiquemos atentos para que a ilusão de uma enxurrada de dólares enviados ao Brasil às vésperas de grandes eventos esportivos pasteurizados não nos surrupie certas peculiaridades.

2 Por isso a nave que ilustra a capa desta edição, profanação da barca de Iemanjá especialmente produzida pelo Coletivo Gambiologia, é uma paródia da arca de Noé que remete também às Grandes Navegações. Ela sai do Brasil em direção a uma ex-colônia genérica, levando a cultura de inovação e as estratégias de sobrevivência mais que características de Pindorama.

3 O que é, aliás, grotescamente paradoxal considerando-se esse volume impresso contendo 110 páginas.

4 deriva sf (der regressiva de derivar) 1 Náut. Desvio do rumo, abatimento. 2 Náut. Flutuação do navio ao sabor da corrente ou do vento. O navio vogava à deriva. 3 Náut. Movimento unidirecional ou correnteza fraca da água superficial oceânica, devido a vento ou diferença de temperatura. 4 Aeron. Deslocação lateral de um avião em vôo, devida a correntes de ar. 5 Desvio lateral de um projétil, causado por fatores estranhos, tais como vento ou resistência do ar. 6 Ling. Direção determinada que norteia a evolução da língua. À deriva: à desgarrada; ao sabor da corrente: O barco andava à deriva. (definição segundo o dicionário Michaelis online)

5 E que surgiu de um contexto gestado coletivamente no Estúdio Osso durante o festival Arte.mov (2008).

6  BÍBLIA, O Apocalipse. Bíblia Sagrada, Trad. De Mateus Hoepers. São Paulo: Editora Vozes, 1996. p. 1452, 1453, 1456, 1460.

7 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 35.

8 ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 11.

9 “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben (1974).