(para meu ermão @dpadua)

Fim do trajeto. Percorremos pouco mais de seis quilômetros. São nove horas e dois minutos.

Quase pontual. VS lembrou mais uma vez que precisava trocar a voz do sistema de navegação. Já havia cansado da simulação de Tom Zé. Mas ficaria para depois. Arrancou os fones de ouvido e deixou-os pendurados no capacete coberto de stickers coloridos. Olhou para o posto de gasolina desativado, exatamente como tinha visualizado pelo pitópe antes de sair. Apeou da bike e empurrou-a até o fim da construção, atento a eventuais olhares curiosos. Ninguém à vista, nessa manhã de domingo na zona oeste de São Paulo. Lixo dançando com o vento, cheiro de mijo, uma ou outra barata fugindo do pouco movimento. Duas câmeras no teto da cobertura do posto, uma na quina das paredes. Ativadas?

Encostou a bike na grade. Puxou o cabo do dínamo, tirou os atilhos que prendiam a placa solar do bagageiro e enrolou tudo, metodicamente. Guardou-os no alforje, que soltou do quadro para passar a fita de montanhismo que o transformava em uma bolsa. Prendeu a bike com dois cadeados. Tirou o telinha do bolso da calça: três redes wi-fi criptografadas na área. Nenhuma aberta. 9h04.

Ia bater no portão de garagem marrom do prédio aos fundos do posto quando a portinhola lateral se abriu. Câmeras ativadas, então. Um homem o aguardava, sorriso sereno no rosto emoldurado pela barba cinzenta. Trajava calças de capoeira, chinelos de dedo e camiseta branca com um nó celta serigrafado em verde. VS reconheceu a tatuagem com três setas circulares no braço do homem, que se dirigia a ele.

“Bom dia! Como você prefere ser chamado? VS? Versus? Vitorino?”

“Versus está bom. E o senhor se chama…” Tentou lembrar dos nicks que conhecia de Soiranigami, mas ele foi mais rápido.

“Nigami. E deixe de lado o ‘senhor’, por favor.”

VS guardou os óculos espelhados dentro do capacete e seguiu Nigami para dentro. Passaram por uma pequena antessala iluminada, com um sofá de dois lugares, uma mesa e um PC, e atravessaram a cortina de plástico para o outro cômodo. Era uma mistura de oficina mecânica, marcenaria e loja de conserto de eletrônicos.

“Aceita uma água ou café?”

“Água, por favor.”

Enquanto esperava, escaneou a sala sem janelas. Ao centro, uma grande mesa aparentando décadas de idade, no topo da qual repousavam um multímetro, uma roda de bicicleta, uma luminária direcional, alguns equipamentos desmontados – roteadores ou hubs –, dezenas de fios coloridos, uma estrutura cúbica de MDF recortado, lâmpadas coloridas, um pitópe exibindo um terminal em tela cheia, uma lupa no suporte articulado e uma morsa.

Na lateral oposta, uma bancada larga com equipamentos. Reconheceu uma máquina de cortar vinil, um torno, outro pitópe, uma impressora 3D e uma serra circular, entre outros. Abaixo da bancada, duas portas de armário e dezenas de gavetas transparentes indicavam um estoque vasto de componentes eletrônicos. As paredes laterais estavam cobertas por desenhos, recortes de revistas, guardanapos rabiscados, quatro monitores presos com fita prateada, fotos, ganchos para pendurar roupas, um ventilador apoiado em barbantes, centenas de stickers e um quadro branco repleto de códigos numéricos.

Meia dúzia de bancos altos, com os assentos desgastados, se espalhavam pela sala.

“Que tipo de coisa tu fazes nessa oficina, Nigami?”

“Tudo que for necessário”, falou retornando da cozinha com um copo d’água.

“E a vizinhança…?”

“Ah, para eles a gente conserta eletrônicos, monta sistemas de monitoramento, sensores, câmeras de vigilância. Como é meio escondido, só vem aquela quantidade de gente necessária pra não levantar muita suspeita – nem poucos nem muitos.”

“Tô ligado.”

“Cê é sobrinho da Wan, é?”, perguntou Nigami.

“Sim, conheces minha tia?”

“Conheci, num evento em Olinda. Trocamos emails de vez em quando.”

“Égua, ela vai me ligar no dia que o barco atracar de novo, vou falar que te encontrei.”

“Seu sotaque é diferente do dela.”

“É, eu fui criado no interior do Pará. Só vivi com a Wan por um tempo, depois que meus pais faleceram.”

“Sinto muito.”

“Tudo bem, já faz tempo.”

“Mais água, Versus?”

“Não, obrigado.”

“Então vamos descer, que a rede tá te esperando.”

Versus seguiu Nigami. Passaram pela cozinha, saíram para um pátio cercado por um muro alto azul e descascado, com uma cerca elétrica no topo. Um pequeno canteiro tinha pés de arruda, alecrim e pimenta. Entraram por uma porta de madeira e desceram uma escada levemente escorregadia. O ar estava frio e seco.

“Que equipamento você trouxe, Versus?”, perguntou Nigami quando estavam nos últimos dos vinte e cinco degraus.

“Trouxe um tablete, me disseram que vocês têm interface genérica.”

“Claro que temos.” Havia duas portas de ferro, ambas levemente oxidadas. Nigami empurrou com força a da esquerda e apontou o sofá no fundo da sala escura.

Todas as paredes eram estofadas, e recobertas com tecido preto. O cheiro era de álcool e resquícios de fumaça – uma mistura de charuto, maconha, cigarro e incenso. Em frente ao sofá ficava uma mesa, improvisada a partir de um daqueles grandes carreteis usados para transportar cabos usados em linhas elétricas. No centro da mesa-carretel, um dock com interface genérica. Na parede em frente, um grande monitor cercado por um par de caixas de som. Orientado por Nigami, Versus ligou seu tablete na interface. Também recebeu dele um teclado com touchpad.

“Vou explicar rapidinho, Versus. Depois que eu sair, sente-se aí e entre na rede. Você vai saber como. No começo vai parecer tempo demais sem acontecer nada. É assim mesmo. Logo alguém vai chamar você, e vocês vão conversar. Depois de terminado, eu volto aqui pra lhe buscar.”

“Certo.” Versus pôs a mão no bolso.

“Eu trouxe aqui um pendrive, é…”

“A oferenda. Pode deixar comigo. Agradecemos muito, seja lá o que for.”

Versus observou enquanto Nigami fechava a porta reforçada. A sala ficou totalmente no escuro, exceto pelos caracteres verdes sobre fundo preto no monitor ao fundo, já pareado com seu tablete. Digitou aleatoriamente no teclado e passou o dedo pelo touchpad, para testar a instalação. Tudo funcionando, como já esperava. Listou as redes disponíveis. Só existia uma, sem criptografia, chamada “Lain”. Conectou-se a ela.

(parte I de IV » continua na próxima edição)