As luzes e as trevas, o aparente e o secreto: eis toda a arte.
Aqueles que a possuem assemelham-se ao céu e à terra,
cujos movimentos nunca são aleatórios1.

Detalhe de escultura criada por alunos do Laboratório de Gambiologia realizado no Exploratorio (Parque Explora). Medellín, Colombia, junho de 2017. Foto: Fred Paulino.

 

A quarta edição da Facta chega ao leitor após um grande hiato. Quase três anos foi o tempo necessário para reunir o conteúdo desta edição. Após lidarmos com a o Apocalipse (Facta #1), a Acumulação (#2) e o Hacker (#3), o tema deste número é, literalmente, a gambiarra.

A ciência brasileira do improviso é a grande inspiração da Gambiologia e neste número da revista se apresenta literal, seminal, transversal. Mas esta inspiração é um processo de transformação constante. Não só o projeto em si, desde sua elaboração mostrou-se completamente mutante, parecendo mesmo ter vida própria, como também a inspiração processual e estética na gambiarra é posta tão somente como o mote inicial para uma reflexão acerca de inúmeros processos da sociedade contemporânea.

 

Gambiarra para todo lado

Primeiramente, Gambiologia relaciona-se a uma proposta criativa atuante nas artes e no design e sugere um deslocamento da improvisação e da precariedade da esfera do cotidiano, da necessidade, da carência de recursos, tratando-as como uma opção estética. Segundo, ela flerta com as discussões sobre o desenvolvimento tecnológico, não só considerando que a eletrônica analógica e os sistemas digitais são parte fundamental das criações gambiológicas, mas também problematizando os impactos da produção industrial massiva de tecnologia – e o que sobra dela – sobre a sociedade e o meio artístico.

Gambiologia alerta também para o uso de resíduos sólidos (tecnológicos ou não), de uma maneira, se não se pode dizer eficiente, peculiar e que tem servido de inspiração a muita gente. Além disso, muitos são os que, desde 2010, têm vivenciado o projeto em sua esfera educacional, integrando oficinas e mentorias que se propõem a lecionar por meio de experiências de aprendizado de tecnologia de uma maneira prática, lúdica, consciente e integrada à realidade dos participantes – e, por tudo isso, bastante efetiva. A Gambiologia é uma estratégia de aprendizado que não se baseia em manuais de instruções, em padronização, mas na valorização da capacidade de improviso e invenção que vem de berço. A relação com o que se tem chamado de “movimento maker” é também cada vez mais evidente, com a peculiaridade do projeto estar inserido no movimento com uma contribuição relevante: o caráter nacionalista, não no sentido de fechar-se a influências e inspirações estrangeiras, mas de se pensar como as referências nativas do que se chama de brasilidade, em suas especificidades técnicas, estéticas e inventivas, podem contribuir para uma melhor assimilação da cultura “fazedora” no país.

 

No Brasil, elas estão por todos os lados. Fotos: Fred Paulino

 

Por fim, há a valorização da capacidade de improviso frente às vicissitudes e a habilidade de reconstrução da própria realidade por meio de processos empíricos, característica notória de povos menos abastados mas que, no entanto, somente cá no Brasil possui nome tão sonoro como “gambiarra”. Aqui, ademais, as habilidades de improvisação tornaram-se praticamente marca registrada, sendo a gambiarra uma alegoria onipresente nos mais diversos contextos sociais2.

As habilidades de improvisação tornaram-se praticamente marca registrada, sendo a gambiarra uma alegoria onipresente nos mais diversos contextos sociais.

A Gambiologia se espalha por mais e mais esferas do conhecimento, e não só o projeto, mas sua compreensão e escopo de atuação se expandem quase viralmente, sem plano prévio. A grande aderência de artistas, pesquisadores, fazedores, criadores, curiosos e “cidadãos comuns” às iniciativas coletivas originadas do projeto, das quais esta revista seja provavelmente o expoente maior, são motivos de satisfação e, para este editor, a prova de que a gambiarra pode ser sim gatilho para uma forma de se pensar o mundo.

Não me interessa neste Editorial uma definição precisa, enciclopédica, do que é gambiarra. Primeiro porque os colaboradores dessa edição da Facta discorrem extensivamente sobre o tema nas páginas a seguir. Segundo porque a gambiarra tem sido maciçamente apresentada em todas as realizações do projeto Gambiologia, não só nos números anteriores desta publicação como, desde 2008, em várias outras iniciativas. Terceiro, e principalmente, porque não me interessa a gambiarra como um conceito fechado, mas tão somente como a articulação de tudo o que foi dito nos parágrafos acima, junto ao que provavelmente está por vir. “O general deve conhecer a arte das mudanças”3.

Gambiarra como sugestão de uma criatividade essencial, que não requer formação ou metodologia.

O que cabe neste texto é um pensamento sobre como a gambiarra pode canalizar processos de mudança, de recombinação, de invenção. Gambiarra como mote de transformação técnica e social. Gambiarra como metáfora de brasilidade, como característica inevitável da “cultura pop tupiniquim”. Gambiarra do Brasil, distinta de processos semelhantes em diversas outras nações, mas agregadora de experiências de coletivização do saber e de atuação do homem sobre o mundo. Não somente um culto à precariedade como aceitação de uma suposta inferioridade frente ao “desenvolvimento”, mas também como diferencial estratégico (skillfulness, diriam os gringos) em um mundo que, cada vez mais, cobra soluções diferenciadas em um contexto de concorrência e crise. Gambiarra como propulsora de uma lógica de reaproveitamento, da sustentabilidade que não se encontra nos manuais dos departamentos de marketing. Gambiarra como prática hacker de reconfiguração das funções dos objetos. Gambiarra do olhar assertivo para as coincidências industriais4.Gambiarra como sugestão de uma criatividade essencial, que não requer formação ou metodologia. Gambiarra em que, com as “mãos na massa”, o ser humano é o ator principal da transformação de seu entorno. Gambiarra de quem transforma não só ao seu entorno, mas a si mesmo. Gambiarra que não é definitiva, tampouco infalível. Pelo contrário, é precária e vulnerável como, na maioria das vezes, somos nós mesmos. Gambiarra que não se pretende consolidada, estática, restrita, eterna. Gambiarra em movimento.

Uma concorrida oficina de gambiarras em São Paulo, Brasil (setembro de 2017). Foto: Fred Paulino

Devaneios sobre a gambiarra em movimento

Buscando a etimologia da palavra “movimento” chegamos ao verbo “mover”, do latim movere, significando basicamente “deslocar”, mas também “induzir, persuadir” e “causar, inspirar”5. São definições sugestivas se lembrarmos de que o gesto de se fazer uma gambiarra denota uma ação perante o mundo. Mas também apresenta um risco, uma crença, uma persuasão a si próprio de que determinada solução para um problema será alcançada, mesmo em um contexto de imperfeição, adaptação material e ausência de recursos adequados.

Na Filosofia, o movimento é, desde a Antiguidade, tema de interesse de grandes pensadores, como Aristóteles, Descartes, Newton, Leibniz, Mach e Einstein. “Uma compreensão adequada do movimento (…) foi considerada crucial para decidir questões sobre a natureza do espaço e do tempo e suas interconexões. (…) As lutas dos filósofos para compreender esses conceitos muitas vezes pareciam assumir a forma de uma disputa entre concepções absolutas ou relativas de espaço, tempo e movimento”6.

Na Física, o movimento é “a variação de posição espacial de um objeto ou ponto material em relação a um referencial no decorrer do tempo”7. Esse ponto referencial não
necessariamente está inerte e, nesse sentido, movimentos são frequentemente exponenciais, com aceleração e bidirecionais. Da mesma maneira acontece a interferência do ser humano sobre o meio. O conhecimento surge a partir de processos infinitos de transformação mútua em que não só o objeto (material, técnico ou virtual) é manipulado, como quem o opera transforma-se, por meio da experiência prática. A gambiarra é uma forma de aprendizado empírico que é transmitida de pai – e mãe – para filho. Por meio da experiência, estimula processos de aprendizado que podem ser socialmente transformadores.

A ciência Física que estuda o movimento é a Mecânica. A Mecânica prática, aplicada a ciclos, carros, motores, engenhocas, é provavelmente um dos terrenos mais prolíficos para a prática gambiarrística, tornando-se inclusive marcas culturais. Exemplos são a Jugaad na Índia e os Rikimbilis em Cuba. Dentre os resultados de uma busca de imagens pelo termo “gambiarra”, ou suas traduções em inglês makeshift, kludge, ou mesmo a cômica macgyverism, provavelmente a maior parte de resultados está relacionada a automotores.

Os principais estudos físicos acerca do movimento foram desenvolvidos por Isaac Newton em sua obra “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural” e sintetizados nas famosas “Leis de Newton”. A título de divagação, pensemos quais são e como podem ser aplicadas nos processos gambiológicos:

 

Newton (1795–1805). Por Willian Blake.

Primeira Lei
Lei da Inércia

“Todo corpo continua no estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme, a menos que seja obrigado a mudá-lo por forças a ele aplicadas.”
Adotar uma postura estática torna um problema insolúvel. Toda solução requer movimento, atitude, atividade. Se não tem recursos adequados, faça uma gambiarra.

Segunda Lei
Lei da Inércia

Lei fundamental da Dinâmica
Os processos gambiárricos são muitas vezes dependentes de um conjunto de forças e materiais – nem sempre minimalistas – e frequentemente o trabalho coletivo é mas profíquo do que uma atuação individual. Comecemos a considerar a Gambiologia como movimento.

Terceira Lei
Lei de Ação-Reação

“Se um corpo A aplicar uma força sobre um corpo B, receberá deste uma força de mesma intensidade, mesma direção e sentido oposto à força que aplicou em B.”
Gambiarra é ação e reação. É atuar sobre as coisas com uma atitude que não é pré-concebida e receber, como resposta, não só uma solução como também um aprendizado.

Se pensarmos a nível atômico, observaremos que o movimento está presente em toda a matéria. Os elétrons de um átomo estão ligados ao núcleo por forças eletromagnéticas e nunca estão estáticos. Aqui podemos divagar que um imenso rol de gambiarras busca sanar problemas relacionados à eletroeletrônica. A própria eletrônica, origem das tecnologias digitais, está baseada em movimento atômico e reconfiguração da matéria. A gambiarra, como transformação da matéria posta, é um movimento macro que parte do micro, e a ele retorna.

A aceleração, componente físico do movimento, é questão central no mundo contemporâneo. O poeta e dramaturgo alemão Heiner Müller apontou em 1990 que “a estratégia de aceleração total econômica e tecnológica se fundava no princípio da seleção, e que o sujeito humano ia desaparecer no vetor da tecnologia”8. A gambiarra, de certa maneira, questiona a inevitabilidade da aceleração tecnológica, trazendo o uso de refugos e tecnologias antigas à experiência cotidiana. Na Física não há aceleração negativa, mas na vida prática clamamos por uma aceleração às avessas. É que nós, humanos, não fomos programados para a velocidade a que somos submetidos e por isso estamos, frequentemente, mais à vontade com os aparatos antigos, obsoletos, mas que, no entanto, estão sob a égide de nossa compreensão e afeto.

Jugaad na India. Foto: http://www.team-bhp.com

Enfim, a gambiarra como movimento

Finalmente, o movimento desta publicação e do projeto que a move. Facta chega, com esta edição, ao fim de sua primeira temporada. Tomamos aqui, de forma literal, a compreensão aristoteliana de movimento como passagem de potência a ato. A potência resultante das quatro primeiras edições da revista são a certeza de sua continuação. Para tanto, se necessário, certamente faremos as gambiarras possíveis para que esta publicação, ápice da confluência de interesses que movem a Gambiologia, permaneça da maneira como for possível. É como a Terceira Lei: a Gambiologia move a Facta, e a Facta move a Gambiologia.

 

Movimentos são articulações que influenciam para além de sua zona de atuação.

Depois de quase dez anos desde o insight de criação da “ciência da gambiarra”, chega também a hora de explicitar sua fragmentação. Para a continuação do projeto, é
imprescindível assumir a coletivização como determinante para o prosseguimento de suas iniciativas e a ampliação de sua área de atuação e influência. Após a dissolução do Coletivo Gambiologia em 2015 e um período de reconfiguração do modus operandi da gambiologia (inicial minúscula para um substantivo comum, será?), ela agora reconfigura-se como uma plataforma criativa aberta, em que os processos colaborativos e uma rede cada vez mais ampla de colaboradores são fundamentais.

Movimentos são articulações que influenciam para além de sua zona de atuação. E exigem certa dose de nomadismo. Para Deleuze e Guattari, “nômades e movimentos artísticos, científicos e ideológicos são potenciais máquinas de guerra, na medida em que traçam um espaço liso de deslocamento – vetorial, projetivo ou topológico, ocupado sem medição, em oposição ao espaço estriado, métrico”9.

Chegamos então à compreensão de movimento como uma reunião organizada de pessoas em torno de um tema, de uma causa. Após anos de apresentação do projeto Gambiologia em várias cidades, países e contextos dos mais diversos, é cada vez mais evidente a possibilidade de articulação de um grupo maior de pessoas em torno da proposta, desde que o projeto esteja aberto para isso. A formação de um movimento requer descentralização e a influência de um grupo de pessoas atuantes, em torno de objetivos comuns. Em nosso caso, exige assumir o caráter mutante do projeto e sua transformação constante não só como inevitável, mas imprescindível. Admitir a impossibilidade de controlar os desdobramentos de uma ideia orgânica, espontânea, improvisada, respondendo progressivamente à ordem dos acontecimentos, mas deixando o acaso gambiárrico influenciar devidamente os rumos dessa pesquisa.

Dito isso, declaro:

Gambiologia não é mais um coletivo, tampouco a ciência da gambiarra. Gambiologia, agora, é a gambiarra em movimento.

Gambiarra Made in USA: o portal There I Fixed It apresenta uma vultosa galeria de gambiarras das mais diversas.

 

1Sun Tzu, “A Arte da Guerra”. Pg. 28. Editora L&PM, 2006.

2A valorização da gambiarra é frequentemente confundida com ufanismo e sua celebração, interpretada erroneamente como se a gambiarra estivesse sendo tratada como “potencial emancipatório”. Prefiro entendê-la como um conjunto de processos criativos e comunicacionais em transformação, que não estão fechados em si, mas acessíveis a um público diverso. Aquilo que frequentemente falta à academia.

3Sun Tzu, “A Arte da Guerra”. Pg. 44. Editora L&PM, 2006.

4Ver ensaio de Guto Lacaz na página 66.

5Antônio Geraldo da Cunha. “Dicionário etimológico da língua portuguesa”. Editora Lexikon, 2010.

6https://plato.stanford.edu/entries/spacetime-theories/

7https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento

8Citação por Laymert Garcia dos Santos, entrevistado desta edição de Facta. http://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,a-inteligencia-das-especies,55853

9Daniel Hora, “Arte hackeamento: diferença, dissenso e reprogramabilidade tecnológica”. Pg. 38. Universidade de Brasília, 2010. Grifo nosso.