Parte IV / IV
No dia 15 de março de 2010, a Academia Brasileira de Letras lançou o primeiro Concurso Cultural de Microcontos. Os microcontos de tema livre deveriam conter no máximo 140 caracteres, seguindo a mesma restrição do Twitter. “Toda terça ia ao dentista e voltava ensolarada. Contaram ao marido sem a menor anestesia. Foi achada numa quarta, sumariamente anoitecida” foi o tweet da ganhadora, Bibiana Silveira da Pieve. A segunda colocada, Carla Ceres Oliveira Capeleti escreveu: “Joguei. Perdi outra vez! Joguei e perdi por meses, mas posso apostar: os dados é que estavam viciados. Somente eles, não eu”.
Diante da mesma restrição imposta, dois microcontos completamente diferentes foram escritos. Diante da mesma restrição, um fenômeno de comunicação está ocorrendo: um volume gigantesco de grandes ou pequenos textos circula diariamente pela Internet e pelos celulares e passa a ser um fator determinante na política, na publicidade, na informação e na literatura. Neste ensaio apresento alguns usos das restrições na literatura – essas, talvez, “gambiarras” matemáticas, tecnológicas e computacionais, concebidas para recriar e refundar a escrita.
Gambiarras Literárias
Letras e números costumam ser vistos como símbolos opostos, correspondentes a sistemas de pensamento e linguagens distintas e por vezes incomunicáveis. Essa perspectiva, no entanto, foi muitas vezes refutada pela própria literatura, que em diversas ocasiões valeu-se de elementos matemáticos como forma de melhor explorar sua potencialidade e de amplificar suas possibilidades criativas. É a esses contatos literário-matemáticos que nos dedicaremos ao longo deste breve ensaio, apresentando algumas experiências desse diálogo entre as letras e os números realizadas ao longo da história literária e discorrendo, com maior profundidade, sobre um grupo emblemático da mesma, em atuação até os dias de hoje: o OULIPO, Ouvroir de Littérature Potentielle, grupo literário-matemático fundado na França em 1960.

Encontro de autores do OULIPO.
A utilização da matemática no campo literário se dá, na maioria das vezes, por meio da apresentação, reflexão e transformação em matéria narrativa de problemas de ordem lógica – como paradoxos, ambiguidades e jogos combinatórios – que objetivam complexificar a narrativa e aumentar sua potencialidade, ampliando suas possibilidades de leitura. É certo que nenhuma leitura é unívoca: o texto, por si só, não diz nada; ele só vai efetivamente produzir sentido no momento em que é lido. Levando ao extremo tal perspectiva, um texto seria capaz de produzir tantos sentidos distintos quanto fossem as leituras dele feitas.
A utilização da matemática no campo literário se dá, na maioria das vezes, por meio da apresentação, reflexão e transformação em matéria narrativa de problemas de ordem lógica.
Qual seria, então, o papel da matemática nessa relação de amplificação potencial? Por que se considera que os jogos combinatórios aumentam as possibilidades de leitura? Nesse sentido, a própria noção de potencialidade torna-se fundamental: potencial é o que ainda não existe concretamente, mas é passível de existência por apresentar-se como possibilidade latente. Então, se dois leitores, diante do mesmo texto, apresentam diferentes possibilidades de leitura, o que acontece com essa potencialidade se os textos ainda puderem ser permutados, alterados, jogados, falsificados, ludibriados? A matemática potencializa o texto, tornando ainda mais amplo seu campo de leituras possíveis a partir de algoritmos, regras, restrições e contraintes, num contínuo processo de expansão: “Mesmo que o projeto geral tenha sido minuciosamente estudado, o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial” (CALVINO, 1995, p. 131).
Uma contrainte pode ser entendida como uma restrição inicial imposta à escrita de um texto ou livro, sendo as mais básicas de caráter linguístico. O OULIPO trabalha tanto com as restrições matemáticas quanto com outros tipos de restrições: dado um tema, os integrantes do grupo discutem e compõem textos, livros e pequenos manuscritos com essa restrição inicial. Já o grupo criado por Jacques Roubaud e Paul Braffort em 1981 chamado ALAMO (Atelier de Littérature Assistée par la Mathématique et les Ordinateurs), que é uma extensão computacional do OULIPO, tem como objetivo gerar textos literários automáticos, dados determinadas contraintes. O grupo oferece, também, alguns programas de computador que permitem qualquer pessoa elaborar e produzir seus próprios textos. São eles: CAVF (Conte à Votre Façon) e LAPAL (Langage Algorithmique pour la Production Assistée de Littérature).
Jogos Matemáticos e Lúdicos
Ainda que a utilização sistemática e rigorosa da matemática na literatura tenha se afirmado com o OULIPO, muitas experimentações de intercâmbio entre as letras e os números foram feitas anteriormente. Um dos primeiros autores que podemos citar nesse âmbito é o trovador Arnaut Daniel, que viveu em Ribérac, França, entre os séculos XII e XIII, considerado um dos grandes poetas da humanidade, responsável pela elaboração de poemas de grande exigência poética e métrica. Daniel é tido como o criador da sextina, um poema formado por seis estrofes, compostas cada uma delas por seis versos, seguidas de uma estrofe final de três versos. Com um estilo narrativo que busca rimas ricas, palavras ou assonâncias raras, cada linha da sextina termina por uma palavra escolhida entre um grupo de seis palavras previamente fixadas – os vocábulos A, B, C, D, E e F, distribuídos da seguinte forma: ABCDEF – FAEBDC – CFDABE – ECBFAD – DEACFB – BDFECA – ECA.
Essa construção trata-se, em termos matemáticos, de uma permutação σ dessas seis palavras, que pode ser representada pela matriz
1 2 3 4 5 6
=
2 4 6 5 3 1
Embora os recursos utilizados não sejam muito avançados em termos matemáticos, suas implicações são bastante importantes para o estabelecimento de um diálogo entre a matemática e a literatura: além de esse mesmo tipo de composição ter sido utilizado por poetas de diferentes épocas, muitos escritores do século XX se interessaram por seus desdobramentos, como Raymond Queneau e Georges Perec, ambos membros do OULIPO.
A grande contribuição de Arnaut Daniel com esse modelo foi a possibilidade de generalização por ele permitida: se substituirmos o 6 por um n qualquer, colocamos em pauta a possibilidade de escritura de um texto qualquer com n estrofes, cada uma com n versos, todos terminados pelas mesmas n palavras. O poeta francês criou, assim, uma estrutura matemática rigorosa para compor sua poesia, determinando a priori e com recursos matemáticos a estrutura de seus poemas.
Não é apenas de forma estrutural que percebemos o diálogo com a matemática ao longo da história da literatura.
Não é apenas de forma estrutural, entretanto, que percebemos o diálogo com a matemática ao longo da história da literatura, que pode se dar também em termos conceituais. É o caso dos caminhos matemáticos indicados por Miguel de Cervantes na composição de Dom Quixote, obra que em vários de seus trechos exalta a matemática numa postura romântica que ainda vê, nessa ciência, uma autoridade, reflexo da crença de que conhecer e provar alguma teoria matematicamente é garantia de tranquilidade para a continuidade do raciocínio. Essa visão, entretanto, da matemática como uma ciência perfeita, coerente e consistente, dilui-se no início do século XX, diante dos Teoremas de Incompletude de Gödel1.
Mas não é apenas nas referências à matemática que Cervantes se firma, recorrendo também o autor aos paradoxos lógicos como recurso ficcional, como numa passagem do livro que narra o período em que Sancho foi governador de Barataria, momento em que precisou solucionar complicadas questões de seus súditos em busca por justiça. Cervantes se vale, nesse momento, de uma variação do paradoxo do mentiroso, atribuído ao grego Eubulides de Mileto no século IV a.C., que em sua mais simples versão assim se constitui: um homem diz que está mentindo; o que ele diz é verdade ou mentira? É essa a situação que se reflete no texto de Cervantes: “Se deixarmos passar este homem livremente, ele mentiu no seu juramento e, portanto, deve morrer; e, se o enforcamos, ele jurou que ia morrer naquela forca, e, tendo jurado a verdade, pela mesma lei deve ficar livre”
(CERVANTES, 2002, p.577).
Se esse paradoxo, a princípio, pode parecer inocente, foi a dificuldade de sua resolução que levou à criação da Teoria Axiomática de Conjuntos atribuída a Bertrand Russell e que pode, por meio de outro movimento, servir à literatura como importante recurso ficcional: o paradoxo do mentiroso, aplicado à matemática e à lógica, criou problemas e novos caminhos para sua solução; na literatura, foi utilizado em inúmeras versões por escritores como Cervantes e, posteriormente, Jorge Luis Borges, escritor para quem a matemática se constitui como recurso criativo fundamental.

Alice ilustrada por John Tenniel.
O paradoxo do mentiroso, aplicado à matemática e à lógica, criou problemas e novos caminhos; na literatura, foi utilizado em inúmeras versões.
Diferentemente de Miguel de Cervantes e Arnaut Daniel, Lewis Carroll, que além de escritor foi um importante matemático, utilizou como estratégias ficcionais de suas obras conceitos estritamente matemáticos e lógicos. Muitas passagens de Alice no País das Maravilhas e Alice através do espelho estão repletas de enigmas e problemas que até os dias de hoje permitem aos leitores múltiplas interpretações. É o caso, por exemplo, dos problemas de relógios apresentados pelo escritor – qual dos relógios marca o tempo mais fielmente? Um que se atrasa um minuto por dia ou um que está sempre parado? –, ou de sua fixação com as imagens dos espelhos e com o jogo de xadrez.
Labirintos
Em novembro de 1960, pessoas que se interessavam tanto pela literatura quanto pela matemática reuniram-se para discutir estas questões e formaram o Sélitex (Seminário de Literatura Experimental). Entre essas pessoas estavam François Le Lionnais, Raymond Queneau, Albert-Marie Schmidt, Jean Queval, Jean Lescure, Jacques Duchateau, Claude Berge e Jacques Bens. Cerca de um mês depois, registrava-se nas atas de reunião do grupo a mudança de seu nome para OULIPO – Ouvroir de Littérature Potentielle.

Ilustração contida no livro “Alphabet” de Raymond Queneau, por Claude Stassart-Springer.
Essa mudança de nomenclatura é importante, pois ela aponta para uma noção fundamental ao trabalho do OULIPO: a de potencialidade da literatura. É exatamente essa questão que justifica o abandono do termo “experimental” presente no acrônimo da primeira denominação do grupo, uma vez que seus membros acreditam que a potencialidade exprime melhor a diversidade de combinações e manipulações da linguagem, a utilização de contraintes, da matemática e das inúmeras possibilidades de leitura.
Raymond Queneau talvez seja o mais importante nome do grupo por sua participação na fundação do mesmo. Conforme Benabou e Roubaud, é ele o “responsável por esta empreitada insana”, “um dos pais fundadores” do OULIPO ao lado de Le Lionnais. Enciclopedista e matemático amador, Queneau vai colocar em prática as concepções de escrita voluntária que norteiam o grupo por meio de diversas obras, dentre as quais se destaca, junto aos também reconhecidos Exercices de style e Petite cosmogonie portative, aquela que pode ser considerada a primeira tentativa consciente de utilização da análise combinatória na literatura: Cent mille milliards de poèmes.
Cent mille é uma verdadeira máquina poética que possibilita a construção de 10 sonetos, com 14 versos cada um, onde a cada primeiro verso de cada soneto podemos fazer a correspondência com outros 10 versos diferentes. Já no primeiro verso, temos a combinação de 100 possibilidades (102); no terceiro verso, 103 possibilidades; em 14 versos, 1014 possibilidades de poemas. Nas palavras de Queneau:
Essa pequena obra permite a cada um compor à vontade cem mil bilhões de sonetos, todos normalmente bem entendidos. É um tipo de máquina de fabricar poemas, mas em número limitado; é verdade que esse número, ainda que limitado, produz leitura por aproximadamente cem milhões de anos (lendo vinte e quatro horas por dia) (QUENEAU apud OULIPO, 2009, p. 879).

Festín de Sancho Panza en la ínsula Barataria. Pintura de Moreno Carbonero.
O poema maquinal de Queneau traz à tona um aspecto da matemática bastante explorado pelo OULIPO e que aporta interessantes perspectivas para a narrativa: a combinatória. Queneau acredita que a literatura é combinatória, e ainda em 1964 queixa-se da falta de instrumental sofisticado que possibilite a exploração da mesma – hoje, as tecnologias informáticas têm propiciado inúmeras experiências nesse campo. É justamente a construção baseada na combinatória que estabelece a principal diferença entre o poema de Queneau e outros textos poéticos: por ser pensado de forma a aceitar – e mesmo a possibilitar – a permutação, sua estrutura, sua rima e sua composição conservam-se, mesmo se executarmos a quase infinita tarefa de 100.000.000.000.000 de combinações possíveis (número que, apesar de muito grande, é finito).
Queneau coloca em cena aspectos primordiais do trabalho literário-matemático do OULIPO: seu caráter voluntário, lúdico e de intercâmbio com o leitor.
Com esse texto, Queneau coloca em cena os três aspectos primordiais do trabalho literário-matemático do OULIPO: seu caráter voluntário, lúdico e de intercâmbio com o leitor. Brincando seriamente com os cem versos do escritor, cabe ao leitor a construção do seu poema, a escolha de um entre os “cem mil bilhões” de poemas diferentes que essa matriz pode gerar.
O texto foge, assim, à estrutura que se lhe impõe, escapa pelos interstícios de uma rede que apresenta os mais diversos cruzamentos e os mais distintos percursos… Transforma-se no vão deixado pelo puzzle, no espaço em forma de X que resta na mesa (quase) totalmente preenchida… No baralho de tarô cujas imagens espelhadas abrem-se à imaginação, num processo de criação, ele sim, infinito, incapaz de ser concluído: “Então suas mãos embaralham as cartas, recolhem-nas no maço e recomeçamos tudo do princípio” (CALVINO,
1994, p. 69).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Italo. O castelo dos destinos cruzados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
OULIPO. Anthologie de l’OuLiPo. Paris: Gallimard, 2009.
1Nos seus teoremas, Gödel prova que um sistema axiomático não pode atestar sua própria consistência e que, caso ele o faça, só pode ser inconsistente. Além disso, em sistemas com o poder de definir os números naturais, sempre há proposições (chamadas “indecidíveis”) que não podem ser provadas dentro do sistema (portanto, o sistema é incompleto). Desta forma, não se pode provar a completude e consistência de um sistema capaz de fazer aritmética.