
Território de complexas camadas organizacionais – do pensamento, do trabalho, de atribuição de valores, a arte contemporânea nos propõe pensar as relações entre a arte e a vida, com suas características próprias do cotidiano. A criatividade nos permite experimentar a arte como fator lúdico do pensamento e da ação. E a própria ação criativa nos faz pensar sobre o Tempo. Tempos, que constituem os tempos da criação: o tempo que passa e o tempo que não passa. Agora não é o fim dos tempos. Agora é um novo tempo, apesar dos perigos: a Era Gambiolítica, ou, o Tempo Gambiolítico ou ainda, O Gambiolítico.
Da mesma maneira que os processos do sistema do inconsciente, os processos do Gambiolítico são atemporais, isto é, eles não são ordenados temporalmente, não se vêem modificados pelo tempo que se escoa. São tempos instauradores, de passagens. Pelo jogo de energia livre que caracteriza seus processos Tudo se Torna e Nada Cessa. O Gambiolítico nos apresenta um convite a uma reutilização das imagens, apontando para a superficialidade do consumo compulsivo a que o sistema capitalista nos molda e evocando o exercício da criação, do ser sujeito-autor-inventor. Existência de fluxos, nuances e variações perpétuos. Ora, se tudo se torna movimento, o próprio autor é cada vez um outro: descontinuidade sucessiva. Assim, aparece uma “infinita variedade de rostos”, que se torna sucessivamente o sujeito autor.
Entendo a Gambiologia como retórica – de ação e movimento –, cuja realização são incursões no meio social, produzido a partir de sua relação com a realidade. O coletivo toma toda a cultura como referência, muito como faz a arte indígena em geral, que possui caráter integrado nos diversos domínios da vida social. Sua natureza é múltipla, ativa, participante e coletiva. Em concordância com a característica da arte contemporânea, que abandona o estatuto de arte como “domínio autônomo de julgamento humano” e como “um fim em si mesmo”, plasmado da Renascença ao Iluminismo. Determinadas características da Gambiologia, como o uso do grafismo, de figuras totêmicas modernas, a utilização de cores primárias e a intenção de romper criativamente com sistemas e hábitos tradicionais instaurados, estavam presentes também nas artes primitivas.
Em ambas as práticas, encontramos uma reflexão sobre questões sociais e as funções que assumiram nas definições de identidade, o que nos permite identificar a presença do caráter processual/experiencial desses engajamentos. A reflexividade, inerente na prática gambiológica, aponta para o caráter processual/experiencial do movimento que, a meu ver, realiza-se fundamentalmente não por seus objetos, mas sim pela sinergia de criação que o coletivo afeta. A exemplo de Oiticica, que, para Favaretto, “não é um criador de objetos para a contemplação… mas se torna um motivador para a criação… Seu campo de ação não é o sistema de arte, mas a visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social. A anti-arte, entendida como série de proposições para a criação, tem, pois, como princípio, a participação”. O Gambiolítico aponta para a inscrição do estético: a arte como intervenção cultural.
A partir dessa perspectiva, poder-se-ia pensar que o xamã, assim como o artista, é motivador da experiência formativa, seja esta entendida como ação reflexiva na avaliação da existência, seja como intervenção cultural. A busca estética regulada por padrões e estilos, e a natureza provocadora de processos de conhecimento e reflexividade, presentes nas manifestações artísticas dos povos primitivos nos permite, então, aproximá-la da produção artística contemporânea ocidental, em especial da prática gambiológica.