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Gravura de Ferrante Imperato “Dell’Historia Naturale” (Nápoles, 1599): a primeira ilustração de um gabinete de história natural

Pouco se pensa a respeito, mas os museus, que em boa parte dos casos guardam o passado (excetuados estão, naturalmente, os que se dedicam à arte contemporânea), também têm passado.

Menos vinculados à estética e à fruição do belo do que à ciência e ao descobrimento, os Gabinetes de Curiosidades ou Quartos das Maravilhas escrevem essa pré-história dos museus. Ambas as denominações, com toda a incontornável carga poética que carregam, expressam o esforço de quem empreendeu rumo ao desconhecido na época das grandes explorações e descobrimentos dos séculos XVI e XVII.

Exploradores que cruzavam os mares e as terras colecionavam objetos raros ou estranhos dos três ramos em que era dividida a biologia na época: animalia, vegetalia e mineralia. Também entravam no rol desse exercício colecionista as realizações humanas, naturalmente as que eram estranhas aos olhos de quem as colecionava, já que falamos de “descobridores” e suas “descobertas” (as aspas chamam a atenção para o quão relativa é essa dinâmica de quem descobriu o quê).

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Os Gabinetes de Curiosidades eram normalmente uma exposição de coisas exóticas e achados procedentes das novas explorações ou de instrumentos tecnicamente avançados, como foi o caso da coleção do czar Pedro, o Grande, que elevou a Rússia a uma outra janela de pensamento ao retornar de uma expedição pelos Países Baixos, de onde trouxe cartas topográficas, livros e invenções de Isaac Newton, além de mestres, técnicos, médicos e homens letrados de todas as áreas. Em outros casos, os Quartos das Maravilhas eram amostras de quadros e pinturas, como as que o arquiduque Leopoldo Guillermo promoveu e que podem efetivamente ser consideradas como as precursoras dos atuais museus de arte.

Os gabinetes tiveram um papel fundamental para o desenvolvimento da ciência moderna, embora refletissem a opinião popular de seu tempo – assim, não era raro encontrar coisas tidas como sangue de dragão secado ou esqueletos de animais míticos. A edição de catálogos, geralmente ilustrados, permitia acessar e difundir o conteúdo para os cientistas da época. Mesmo em algumas enciclopédias e dicionários ilustrados da primeira metade do século XX esse tipo de edição ainda ecoava.

O tema, de modo geral, ainda é explorado pelo mercado editorial. Bom exemplo é a coleção “O Gabinete das Curiosidades”, lançado pela editora Dantes com oito volumes em 2008. Trata-se de material que vinha sendo levantado desde 1999.

Cinco dos títulos constituem uma espécie de “Brasiliana” (termo que, no conceito do bibliófilo e historiador Rubens Borba de Moraes, designa livros sobre o Brasil – no todo ou em parte, impressos ou gravados desde o século XVI até o final do século XIX, e os livros de autores brasileiros impressos ou gravados no estrangeiro até 1808): foram escritos por boticários, naturalistas e curiosos nascidos no Brasil no século XVIII com o intuito de narrar, classificar ou pesquisar o território e a natureza brasileira e suas potencialidades numa época em que o novo mundo e seus artigos não eram sequer verbetes consolidados nas enciclopédias. Os outros três títulos tratam de termos e questões técnicas que costuram o conjunto das obras.

Os Gabinetes de Curiosidades desapareceram durante os séculos XVIII e XIX, sendo substituídos por instituições oficiais e coleções privadas. Os objetos considerados mais interessantes ou valiosos foram transferidos para museus de artes e de história natural que começaram a ser fundados. Tiveram grande importância no estudo pioneiro de certas disciplinas de biologia ao criar coleções de fósseis, conchas e insetos.

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Mas assim como na esfera editorial, o conceito e a própria conformação dos Quartos das Maravilhas acabaram reverberando para além de seu tempo, até a atualidade. São, por exemplo, referência para a produção no universo das artes. Vários trabalhos do controverso britânico Damien Hirst (mais conhecido por suas exposições de animais mortos conservados em formol) têm ligação com a estética dos Gabinetes, como os “Trinity Cabinets”, que dispõem em estantes objetos da farmacologia (acima). Nomes como Tim Holtz e Mark Dion também desenvolvem trabalhos que dialogam com o tema.

No Brasil, o artista gráfico, designer de produto e integrante do Coletivo Gambiologia Paulo Henrique Pessoa “Ganso” já lançou um olhar sobre o tema com seu “Gabinete de Curiosidades Jean Baptiste 333” – obra que integrou a exposição “Gambiólogos”, apresentada em Belo Horizonte em 2010.

 

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