Como você chamaria o ambiente social em que vive? Sociedade da informação, sociedade pós industrial, sociedade do consumo, sociedade do controle, sociedade em rede? O artigo a seguir não vai chegar a uma conclusão sobre a resposta a essa pergunta, mas vai refletir, por uma ótica darwinista, a respeito da dificuldade em respondê-la. Dificuldade que indica a mais singular das características desse ambiente.

 

 

Consumismo totalmente integrado ao nosso dia-a-dia, fácil acesso à informação e à comunicação, socialização através de redes digitais, grande poder de controle social através do monitoramento tecnológico e gestão do ambiente natural são algumas das características da sociedade contemporânea. Porém a mais singular de suas características é a instabilidade, a fluidez, a velocidade com que ela se altera, impulsionada pelas evoluções tecnológicas e científicas.

Provavelmente, nunca o ambiente social foi tão instável. Há alguns milhares de anos, o homem vivia em cavernas. Hoje, graças à nossa inteligência, habilidades e capacidade de trabalhar em grupo, dominamos o ambiente natural. Não há predadores a serem temidos, a não ser os invisíveis, vírus e bactérias, adaptados aos ambientes urbanos superpovoados. Os riscos de catástrofes naturais são mínimos e, boa parte, previsíveis e contornáveis. A escassez de alimentos pode acontecer mais por um colapso econômico que pela falta do próprio alimento. A obesidade parece preocupar mais que a fome. A longevidade já é muitas vezes tratada como um problema. Vivemos em um ambiente funcional e civilizado, moldado com o objetivo de gerar conforto e bem estar.

 

 

Mutações em um Ambiente Mutante

Mesmo com todo o desenvolvimento da civilização, o chamado animal moral não contraria a lógica do processo evolutivo, baseado na competição, na superação das adversidades ambientais e na seleção dos mais aptos1. Este processo é responsável pela evolução da vida. Fez uma simples criatura, com a capacidade de se replicar, desdobrar-se em infinitas espécies distintas, graças a pequenas mutações selecionadas e acumuladas de geração em geração, até chegar a uma espécie curiosa: nós, o homo sapiens sapiens, dotada de inteligência e moralidade2. Essas qualidades, ao contrário do que alguns pensam, não nos fizeram transcender a condição de animal e negar nossos instintos e os princípios da evolução das espécies.

A Luta pela Existência, a Seleção Natural e a Sobrevivência do mais Apto3 continuam presentes em nosso dia-a-dia. Ritualizados, é claro. Ou seja, racionalizados, regulamentados e enquadrados em padrões morais definidos socialmente. Assim é nossa vida profissional, nossa formação escolar e acadêmica, a competição entre as empresas4. Sem falar nos esportes e na política. A lógica do processo evolutivo descrita por Darwin está presente no ambiente social civilizado que evoluiu ao nosso redor5 e que, hoje, muda com uma velocidade inédita.

As mutações precisam acompanhar essa velocidade. Não podem se dar ao luxo de acontecer de uma geração para outra e esperar a Seleção Natural. Elas não são mais biológicas. São mutações tecnológicas. O automóvel supre a nossa necessidade de locomoção em distâncias maiores. Com os telefones celulares modernos, acessamos um universo infinito de informação ou conversamos com pessoas em qualquer parte do planeta. Internet, computadores, remédios, drogas, acesso ao conhecimento e à informação, cirurgias, engenharia genética. Todas essas tecnologias potencializam nossas habilidades naturais e nos insere competitivamente no ambiente social tecnológico. Aos poucos, em nossa Luta pela Existência, vamos nos tornando ciborgues, dependentes de tecnologias.

 

Mutações Sob Medida

Mutações tecnológicas são demandadas. Surgem e se tornam obsoletas rapidamente, atendendo também a uma necessidade de sobrevivência das indústrias6. Alteram o ambiente e evoluem para acompanhá-lo. Elas não nascem conosco. São bens de consumo: dos meios de locomoção aos computadores, dos celulares aos remédios psiquiátricos, das redes sociais digitais à engenharia genética.

Superada a luta pela sobrevivência propriamente dita, parte das motivações competitivas individualistas são orientadas para o consumismo, que se torna uma forma de Seleção Natural (ou social). Um ritual competitivo. Assim, o sistema econômico capitalista mostra-se totalmente integrado à natureza humana, explorando nosso instinto de Luta pela Existência, nosso medo da exclusão pela Seleção Natural e alimentando o ciclo trabalho-consumo.

Robert Wright, no livro “O Animal Moral”, sugere que o fato de vivermos em um ambiente para o qual a nossa espécie não evoluiu pode ser causa de um grande desconforto7. Hoje, mais que isso, vivemos em um ambiente social instável; em uma sociedade líquida, como diria Bauman. Imagine a tensão gerada por estarmos o tempo todo, inconscientemente, preocupados em nos adaptar a esse ambiente mutante.

A busca por adaptar-se ao ambiente não é uma opção racional consciente. É instinto de sobrevivência.

 

 


1 O espírito competitivo faz parte de todo ser vivo. A competição é um grande combustível motivacional. A colaboração e a capacidade de trabalhar em equipe são habilidades moralmente louváveis, que visam a superação de desafios comuns; mas também visam a soma de forças para competir em níveis mais elevados, como em uma guerra, por exemplo. Uma forma de ilustrar o conflito entre princípios morais e motivações competitivas pode ser encontrada na história do próprio Charles Darwin. Por mais de duas décadas, ele relutou em publicar A Origem das Espécies, pois o livro ia de encontro a princípios morais e religiosos de sua família. Finalmente, tomou a decisão de publicá-lo, quando se deparou com a possibilidade de perder a originalidade de suas ideias para outro pesquisador, Alfred Wallace, que, em 20 páginas, apresentava ideias muito semelhantes às de Darwin.

2 Há quatro bilhões de anos surgiu uma molécula com a capacidade de se replicar, da qual todas as espécies vivas hoje descendem. Era uma criatura extremamente simples, com a qual nós, homo sapiens sapiens, temos pouquíssima coisa em comum, além do fato de querermos nos manter vivos, no que Charles Darwin chamou de Luta pela Existência. Quinhentos milhões de anos atras, surgiram as primeiras criaturas terrestres: micróbios e plantas. Até então, a vida se resumia ao ambiente aquático. Depois, vieram os insetos, os anfíbios, os répteis, as aves e os mamíferos. O primeiro primata surgiu há 55 milhões de anos e os humanos há 150 mil, herdando características físicas e comportamentais de todo esse processo evolutivo. (Fonte: EVANS, Dylan; ZARATE, Oscar. Introducing Evolutionary Psychology: a graphic guide. Londres: Icon Books. 1999.)

3 Já há alguns séculos, o ambiente natural não exerce grande pressão na seleção dos humanos mais adaptados. Mesmo assim, tomei a liberdade de usar o termo original criado por Darwin em “A Origem das Espécies”. O mesmo vale para a Luta pela Existência e Sobrevivência do mais Apto.

4 A Teoria Contingencial da Administração considera as empresas como organismos e o mercado como um ambiente. As corporações seriam indivíduos em sua Luta pela Existência, passsando por processos de mutação, Seleção Natural e Sobrevivência do Mais Apto. (Fonte: MORGAN, Gareth. Imagens da Organização. Capítulo 3: A Natureza entra em Cena: as organizações vistas como Organismos. Tradução: Cecília Whitaker Bergamini, Roberto Coda. São Paulo: Atlas, 1996.)

5 “A invenção de ferramentas, do fogo, o advento do planejamento e da caça coletiva propiciaram um crescente controle sobre o meio ambiente, uma crescente proteção contra os caprichos da natureza. Como, então, cérebros de macacos se transformaram em cérebros de homens em alguns milhões de anos? Aparentemente, a resposta se deve em grande parte ao fato de o meio ambiente da evolução humana ter sido composto por seres humanos (ou pré-humanos). (…) A evolução dos seres humanos consistiu principalmente na adaptação mútua.” (WRIGHT, Robert. O Animal Moral. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Campus.1996, p. 10)

6 A obsolescência programada (ou obsolescência embutida) é, hoje, necessária para a sobrevivência de boa parte das empresas. Para o bem delas e da economia globalizada, não se deve contar apenas com as evoluções sócio-ambientais para que determinado produto se torne obsoleto. Os responsáveis pela produção devem planejar sua obsolescência, seja usando matéria prima de qualidade inferior, seja excluindo algum item que será incluído na versão seguinte, seja retirando peças de reposição do mercado, seja reforçando padrões estéticos por períodos de tempo, etc.

7 “Temos pelo menos um palpite seguro: qualquer que fosse o ambiente ancestral, não era muito parecido com o ambiente em que vivemos hoje. Não fomos desenhados para ficar de pé em plataformas de metrô apinhadas de gente, ou para morar em subúrbios ao lado de gente com quem nunca falamos, ou para sermos contratados ou demitidos, ou para assistir o noticiário noturno na TV. Essa disjunção entre os contextos para que fomos desenhados e a vida que levamos provavelmente é responsável por muitas psicopatologias, bem como muitos males de menor gravidade. (E, tal como no caso da importância da motivação inconsciente, em parte devemos a Freud esta observação; é o fundamento do seu O mal-estar na civilização).” (WRIGHT, 1996, p. 20)