– Est-ce qu’on ne peut pas admettre que des hommes capables, intelligents, et à plus forte raison doués de talent ou même de génie – donc indispensables à la société – au lieu de végéter toute leur vie soient dans certains cas libres de désobéir aux lois?
– Cela me paraît difficile, et dangereux.
– Pour la société ce serait tout bénéfice.
– Et qui distinguera des autres ces hommes supérieurs?
– Eux-mêmes, leurs consciences.1

“Habit d’Orlogeur”, Nicolas II de Larmessin (circa 1690)
O filme “Pickpocket”, obra-prima de Robert Bresson, narra a trajetória de um atormentado, talentoso e apaixonado batedor de carteiras. Apesar de exercer esse “ofício”, o protagonista não parece ser movido por ambição. Ele parece, na verdade, instigado por um misto de falta de opção, conveniência e satisfação tátil, mas, principalmente, por um sentimento irracional de desafio pessoal, a partir da contravenção. Mais do que uma obra genial sobre a condição psicológica humana e seus desvios, em uma sociedade que nos cobra, a todo instante, coerência e produtividade, o filme – realizado com extremo rigor cinematográfico – abre caminho para uma leitura singular sobre a questão ética.
A ética (proveniente do grego ethos, “bom costume”, traduzido para o latim mos) é um conceito amplamente abordado na filosofia. Para se ter ideia, uma busca pelo termo na Stanford Encyclopedia of Philosophy retorna nada mais nada menos que 907 verbetes. Em linhas gerais, a ética está relacionada com a atuação do homem sobre o meio coletivo, pautada pelo caráter e pelas regras sociais vigentes (ou possíveis). É o estudo do código moral e da forma como lidamos com ele cotidianamente, a partir de nossas múltiplas individualidades.
Filósofos da antiguidade defendiam que o homem deve ser correto e virtuoso. Para Aristóteles, a felicidade (eudemonia) não consiste nem nos prazeres, nem nas riquezas, nem nas honras, mas numa vida virtuosa. Séculos depois, Spinoza abordaria o tema de forma racional e geométrica no livro “Ética”, de 1677. Segundo ele, para alcançar a felicidade é preciso compreender e criar as circunstâncias que aumentem nossa potência de agir e de pensar. É imprescindível, para isso, tornar-se o mais independente possível das paixões. A ética pode, portanto, ser interpretada como uma espécie de estudo “qualitativo” da conduta humana em sua relação com o mundo, pautada por duas interpretações relacionadas, mas frequentemente incompatíveis: o julgamento de si pela maioria e a busca pela satisfação pessoal. Nossa procura pelo prazer está quase sempre relacionada com o outro. Como, então, pensar a ética hoje, em um contexto no qual nossa relação com a sociedade é cada vez menos pessoal, e sim virtualizada e mediada pela tecnologia?
Há um obscuro personagem da sociedade contemporânea que nos permite diversas elucubrações sobre a ética: o hacker. Ele é o tema desta edição. O que é um hacker? O senso comum sugere um jovem cidadão sagaz, geralmente do sexo masculino, com conhecimento tecnológico avançado que, guiado por um espírito destrutivo e aproveitando-se de fragilidades em sistemas de criptografia e segurança, passa seu tempo invadindo computadores e contas bancárias alheias. Segundo essa leitura, o hacker flerta constantemente com a ética, ou com a ausência dela, ignorando a legalidade na rede em prol de benefícios próprios. Mas essa interpretação é limitada, se considerarmos a potência por trás desse personagem.

Da ética à poética, num salto de milênios
O termo “hacker”, cuja etimologia original é “cortar grosseiramente” (por exemplo, com um machado ou facão), foi reapropriado na década de 1950, para descrever modificações em relés eletrônicos de controle dos trens. A partir de meados de 1970, passou a ser usado para nomear truques mais ou menos engenhosos de programação, muitas vezes usando recursos obscuros do computador. Nos anos 1980, surgem os primeiros vírus eletrônicos e posteriormente, no início da década 1990, hackers derrubam seguidamente a rede de ligações de longa distância da AT&T nos EUA. A reação governamental vem na mesma proporção, com a criação de leis específicas para conter e punir o chamado “crime digital”. Desde sempre, à medida que contraventores eletrônicos praticam sua arte, o sistema trabalha arduamente para contê-los.
No entanto, analisando mais profundamente a atuação dos hackers e seus valores, é possível concluir que eles não estão necessariamente interessados em praticar crimes digitais, mas muito mais em usar as limitações de segurança das redes de computador – e de outros sistemas – para testar, e aprimorar, seus conhecimentos sobre tecnologia e, por que não, sobre o mundo em geral. Sempre movidos muito mais pela superação de desafios próprios e pela colaboração com a comunidade com a qual se relacionam do que por benefício material.
Muito já se escreveu sobre o assunto, mas a pedra fundamental de uma possível “filosofia hacker” é o livro “Hackers: heroes of the computer revolution”, publicado pelo jornalista norte-americano Steven Levy, em 1984, e lançado tardiamente no Brasil, em 2012. Na obra, Levy discorre sobre as pessoas, as máquinas e os eventos que definiram a cultura hacker e propõe os fundamentos de uma “ética hacker”, seguida até hoje por muitos adeptos. São eles:
- o acesso a computadores – e a qualquer coisa que possa ensinar algo sobre como o mundo funciona – deve ser ilimitado e total;
- toda informação deve ser livre;
- duvide da autoridade, promova a descentralização;
- hackers devem ser julgados pelo que realizam, e não por critérios fictícios, como grau acadêmico, idade, raça ou posição social;
- você pode criar arte e beleza no computador;
- computadores podem mudar a sua vida para melhor.
Mesmo que o autor devaneie acerca da concepção clássica sobre a ética, a interpretação visionária “hackeada” de Levy sobre o conceito abre caminho para nova leitura da relação tecnólogo-mundo, possibilitando uma compreensão mais ampla do nosso personagem. Já no sumário do livro, ele se refere aos hackers como “aventureiros, visionários, gente que corre riscos, artistas…” e não nerds rejeitados socialmente, ou programadores pouco profissionais que escrevem códigos de computação toscos.

Nos anos 1970, em Nova York, iniciou-se um “hack” na função do sistema público de transporte. O metrô era usado por grupos de bairros distantes para transmitir mensagens entre si, que eram pintadas nos vagões. Esse “jogo proibido” consolidou o desenvolvimento de uma nova linguagem artística: o graffiti.
A proposta de uma ética hacker é retomada em outra obra fundamental sobre o tema, “The hacker ethic and the spirit of the information age” (“A ética hacker e o espírito da era da informação”), de Pekka Himanen. O livro – cujo título remete a “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, de Max Weber – estabelece princípios que relacionam, ou contrapõem, a ética hacker à protestante, focando sua análise nas relações com o tempo, o trabalho, a estabilidade e o dinheiro. Himanen sugere que o hacker (assim como o protagonista de Bresson) não se pauta pelo retorno financeiro nem se prende à rotina em busca de resultados imediatos. Sua construção é cotidiana, movida por impulsos de paixão e liberdade, em que há um fluxo dinâmico entre o trabalho criativo e os prazeres da vida. O que importa é o valor simbólico da sua realização, os benefícios à comunidade e o reconhecimento pelo grupo, nem sempre através de uma remuneração. Resistente ao modelo de acumulação produtiva capitalista, o hacker não está necessariamente interessado em um resultado final, mas num processo, ou mais, em uma potência transformadora.
O “hackeamento” pode ser, assim, comparado a uma intervenção. Hackear é transfigurar um sistema qualquer – inserindo nele algo não previsto inicialmente, subvertendo seu uso original, redefinindo sua função. Isso nos permite uma nova definição do hacker: ele deixa de ser o “nerd tecnólogo”, ligado exclusivamente ao universo dos computadores. Como muito bem aponta Raquel Rennó (colaboradora essencial na articulação das pautas para esta edição, diga-se), em seu texto para o catálogo da exposição “Gambiólogos 2.0”, citando Mackenzie2: é um engano nos limitarmos “a entender a tecnologia e mesmo o software como virtualidade”. Para o autor, é necessário “ver o código como prática e matéria, até mesmo para se compreender como se deu a construção discursiva que deu origem à ideia de invisibilidade e, consequentemente, todas as implicações sociais e políticas desse fenômeno. Assim, retiramos a tecnologia do ambiente puramente técnico e podemos compreendê-la a partir de seus entrelaçamentos com as práticas culturais”.

Life hacking: os cartões que acompanhavam embalagens de cigarro no início do séc. XX traziam dicas de “macetes” para o dia a dia.
Não se trata mais de uma subcultura específica do território da informática, tampouco de uma contracultura. A verdadeira cultura hacker se manifesta, também, no cotidiano e em inúmeras áreas do conhecimento. O hacker pode atuar efetivamente sobre a realidade, questionando e reprogramando saberes. Compreender a dinâmica do hackeamento no mundo atual e aproveitar-se da noção de reaproveitamento/reapropriação/refuncionalização é se instrumentalizar para compreender melhor o uso das coisas e, por fim, do mundo. Assim como o artesão-gambiólogo cria novas utilidades para os objetos ao redor, multissignificando seus usos, o hacker “brinca” com códigos digitais, refuncionalizando sistemas segundo necessidades ou interesses (não por acaso, esse acento lúdico fica claro quando observamos que muitos hackers são, profissionalmente, programadores de jogos). Da mesma forma, o poeta, por sua vez, é aquele que “reprograma” o vocabulário, criando novos significados, nem sempre lineares. O artista joga com os materiais do mundo; o poeta manipula livremente as palavras, para além das normas gramaticais. Ambos transfiguram linguagens, subvertendo-as.
Pois voltamos a Aristóteles, que, junto a Platão, foi pioneiro na investigação da poesia enquanto criação estética. Várias de suas anotações foram organizadas posteriormente no livro “Poética”, em que reflete sobre a poiesis, ou seja, “fazer, compor, realizar, converter pensamento em matéria” – o que curiosamente, diga-se, nos faz remeter à figura do maker e, por que não, do hacker. Dentre diversas possíveis interpretações sobre sua obra, podemos reconhecer a poesia como o processo criativo em si, que pode ter um viés lúdico ou não, mas sempre resulta em uma experiência de prazer. Pino Parini, por sua vez, afirma que “no campo das artes, poiesis se refere à fascinação provocada no momento em que, mediante múltiplos fenômenos associativos alcançados pela percepção, os diferentes elementos de um conjunto se interrelacionam e integram-se para gerar uma entidade nova, denominada estética”.3 Trata-se, literalmente, do próprio processo de hackeamento definido como poesia e, portanto, como arte.
A ética hacker torna-se uma poética.
Conforme sugerido por Steven Levy, o hacker é, então, um criador. Por meio de uma poética própria (que não é necessariamente estética, mas pode ser), ele reconfigura e remodela sistemas quaisquer a seu redor. Esta edição da Facta não nega o hacker tecnólogo, mas propõe pensarmos além. Da mesma forma que a Gambiologia é a ciência que une o analógico ao digital, a criatividade cotidiana às artes formais, a inovação tecnológica à cultura de rua, o hacker é aquele que, saindo da obscuridade, invade o nosso dia a dia e disponibiliza formas alternativas e, por que não, criativas, de acessarmos os sistemas vigentes.
Retornemos ao batedor de carteiras. Ao invadir o espaço de outro indivíduo sem ser notado, seria ele um hacker de sentidos? E o que dizer de um ilusionista que se livra de correntes debaixo d’água, a olhos vistos, sem que jamais cogitemos descobrir o seu truque? Seria ele um hacker do olhar? Há formas de hackear o sistema educacional, o mercado de ações, o escritório? Seria a causa-tendência queer uma forma de hackear o cotidiano e a sexualidade, ditados há séculos pela heteromonogamia? Como o hackeamento biológico, a decifração e a recombinação dos códigos genéticos podem reverberar em conquistas que melhorem efetivamente a vida das populações? Como avaliar a incomensurável relevância de hackers como Edward Snowden e Julian Assange, figuras-chave para se compreender a dinâmica geopolítica atual?
Na contemporaneidade, tempo em que praticamente toda comunicação passa por sistemas indexados comercializáveis, o cotidiano é programável e a vigilância é crescente, o impulso hacker pode, e deve, estar presente em qualquer área, em qualquer indivíduo. E, talvez, hackear a realidade através de uma poética seja, a esta altura, a única forma de independência e criatividade possível.
My crime is that of curiosity.4

1
– Será possível admitir que homens com certas habilidades, dotados de inteligência, talento ou genialidade, e que são indispensáveis para a sociedade, ao invés de se sentirem paralisados sejam livres para desobedecer às leis em certos casos?
– Isso seria difícil. E perigoso.
– A sociedade só ganharia com isso.
– Quem identificaria esses homens superiores?
– Eles mesmos. Suas consciências.
(Diálogo do filme “Pickpocket – O batedor de carteira”, de Robert Bresson, 1959).
2
MACKENZIE, A. Cutting Code: Software and Sociality. New York: Peter Lang, 2006.
3
PARINI, Pino. Los recorridos de la Mirada: del esteretipo a la creatividad. 2001. Disponível em: http://es.wikipedia.org/wiki/Poiesis. Acesso em: 24/03/2015. (tradução livre)
4
Citação ao manifesto “A consciência de um hacker”, apresentado a seguir nesta edição.