Prólogo

Apesar de ter sido uma das maiores catástrofes fabris na história, o desabamento da fábrica Rana Plaza em Bangladesh, que matou cerca de 1100 pessoas e feriu perto de outras 2000, parece pouco ter afetado a indústria da moda. A fábrica produzia peças para gigantes como Primark, WallMart, GAP, H&M e outras (é difícil, hoje, o armário de um consumidor de moda não conter ao menos uma peça de alguma delas). Mas dos pedidos de assinatura de um Tratado que melhorasse a qualidade de vida dos trabalhadores naquele país, muitas dessas grandes marcas ficaram de fora.

 

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“A cada semana uma nova coleção” Chilli Beans

Para 162 modelos, produzidos em tiragens com variação entre 35 e 140 unidades, 2 estilistas, 15 costureiras, 5 modelistas, 1 mês de pesquisa (por materiais, formas, acabamentos, volumes, cores e aviamentos), 3 meses na produção de um mostruário de peças pilotos, 15 minutos de desfile, 5 meses de venda, seguidos por 2 meses de liquidação, a fim de reduzir ao máximo os estoques da estação, correspondendo a quase 50% de toda a produção1. Com períodos de sobreposições de etapas, o ciclo se repete ininterruptamente.

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A moda é rápida, para o semioticista francês Roland Barthes ao reconhecer a criação do design de obsolescência em seu “O Sistema da Moda” (ainda que não nestes termos) via instituição de durações específicas para estações, tendências e coleções e diferenciação clara entre moda (tendência) e Moda (estilo); para estilistas que, a fim de alcançar metas de vendas estabelecidas pelas empresas, são obrigados a criar coleções de primavera, verão, resort, alto verão, outono, inverno, e ainda compartimentam cada estação em 3 ou 4 meses; para o consumidor, que encontra a impossibilidade de acompanhar e adquirir peças a cada novo lançamento, de ampliar seus armários a cada seis, quatro, três meses; e para as fábricas de tecido, continuamente pressionadas por novidades que devem ser apresentadas com mais de um ano de antecedência dos lançamentos nas lojas.

A moda é rápida, rápida o suficiente para não conseguir processar um termo em língua estrangeira e traduzi-lo para a língua local e, na urgência da incorporação, transforma, por exemplo, peep-toes2 em peep-tools.

sobre-moda_zPensar o termo coleção neste cenário parece absurdo, com um número infindável de objetos entrando em cadeias de produção e inseridos em lojas a cada 3 meses, 1 mês, ou ate mesmo 1 semana (como sugerido na campanha da marca de óculos Chilli Beans). Acompanhar a última tendência adquirindo um par de óculos com armações em cores neon, porque eles caíram perfeitamente naquela it-girl3, não é um investimento, por mais que vendedores tentem nos convencer disso.

Não é pretendido aqui construir um guia de melhor custo-benefício para compras em moda, mas sim propor uma forma de análise qualitativa que beneficie o desenvolvimento de um mercado de consumo mais sustentável e uma reflexão sobre os caminhos que este campo do conhecimento e do comércio tem traçado.

Desde suas origens, nas maisons dos primeiros criadores na França, a moda depende de uma sazonalidade com extensão não muito prolongada de validade de tempo para sobreviver como indústria e estabelecimento comercial. No século XVI esta duração chegava a alcançar décadas. Com o aumento da disponibilidade de materiais pós industrialização, o crescimento da mão-de-obra qualificada disponível, e mais tarde, a diminuição da quantidade de tecido utilizada na confecção de uma peça (mudança natural decorrente das guerras), esta vida útil vai sofrendo diminuições. No momento em que nos encontrarmos hoje, uma ‘tendência’ pode durar menos que uma estação.

Mas se a moda participa de um conjunto de expressões criativas, a partir do momento em que os criadores passam a assinar suas peças inserindo etiquetas, tendo sido elas contemporâneas ou não, aplicar a proposta de colecionismo do curador norte-americano Bruce Altschuler em “Collecting the New” (2005) parece muito sensata. Para ele, compor uma coleção compreende tanto momentos de aquisição e análise quanto momentos de troca, cessão e destruição. Sua proposta é direcionada ao desenvolvimento constante (inevitável quando se trata da produção que acontece no momento evolutivo do presente) de coleções em arte contemporânea, e levanta diversas questões como qual a duração válida para o contemporâneo. Pensar essa idéia para a aquisição de peças em moda nos leva ao reconhecimento e esclarecimentos de movimentos que vem sendo iniciados desde o surgimento do pret-a-porter e que, nos dias de hoje, parecem fazer cada vez mais sentido.

Troca e Cessão

Por sorte, preocupação ambiental, falta de espaço ou por simples ausência de fundos disponíveis, muitas iniciativas interessantes concorrem com o comércio tradicional de peças de roupa. Olhares variados sobre a moda e a roupa encontram, nestas formas de transferência, possibilidades de diálogo. Para muitos, o uso da roupa ainda estabelece uma relação de mera necessidade básica com o usuário. Para outros, se expande para espaços de expressão cultural, afirmação social, tratamento estético. O surgimento de brechós, lojas de segunda-mão, aluguel de roupas, e encontros promovidos entre conhecidos para trocas de peças têm movimentado de forma saudável, sustentável e acessível o mercado de moda.

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Destruição (ou Auto-Destruição)

O exemplo acima apresenta uma sugestão real em planejamento de vendas de uma marca ‘rápida’ brasileira. O algodão utilizado aqui talvez tenha uma trama pouco fechada e deforme irregularmente ao lavar, a costureira talvez seja proveniente de outro país latino-americano e, para pagar suas dívidas com a imigração ilegal mantenha seu custo de mão-de-obra abaixo de R$4/hora para o empregador e sendo cobrada uma velocidade bem acima do comum (fazendo as contas, jamais alcançaria um salário mínimo trabalhando as normais 45h/semana), dentre outras possíveis irregularidades na produção. A qualidade, portanto, garante que ainda que o design do objeto ultrapasse um semestre, sua integridade física certamente não conseguirá. O fast-fashion (e ainda tantos outros caminhos na moda, visando lucro máximo acima de qualquer outro valor) elimina parte do trabalho na construção e/ou seleção de uma coleção pelo consumidor.

Estabelecendo limites de custo para tecidos, aviamentos e mão de obra a serem utilizados em uma peça, com estratos bem definidos dentro de cada linha, a moda que mais cresce no mundo no momento poupa seus consumidores da seleção para destruição. Com valores definidos inquestionavelmente baixos, H&M, Zara, Forever21, C&A, Primark, e tantas outras, garantem que a durabilidade de seus produtos não ultrapassará muito mais que os 6 meses de uma estação, se auto destruindo, em aspectos visuais e funcionais.

A constante luta pelo menor custo e maior lucro já tão estabelecida no universo produtivo da moda faz com que clientes deixem de questionar a razão de um short ‘rápido’ custar R$128 e considerem ‘roubo’ uma outra cadeia de produção, que prioriza sustentabilidade dos processos, durabilidade do produto e qualidade de vida dos profissionais envolvidos, a qual não encontra formas de tornar sua ‘marca menor’ competitiva em relação às grandes marcas.

Além da planejada obsolescência nas funções (como alterações de tamanho graves após a primeira lavagem, bolsos com costuras abertas nos primeiros usos, perda de botões, dentre outros), a obsolescência de estilo é peça central no desenvolvimento de um produto de moda.

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modelo: Aline Paiva / Agência Ford MG

Auto-Regulação

Terrível constatação: essa precariedade em qualidade, combinada com a expertise em design de obsolescência, acaba fazendo com que a moda em seu sistema se auto-regule até certo ponto. Se mantivéssemos o volume produzido atualmente em unidades, substituindo a matéria prima por tecidos de qualidade e utilizando mão de obra que leva o tempo necessário para executar bem todas as etapas do fechamento de uma peça, poderíamos gerar um grande problema. Tramas mais bem construídas podem levar mais tempo para degenerar, todos os armários se tornariam pequenos para comportar toda a coleção que, ainda que utilizada por anos, perduraria. Cenário ridiculamente absurdo, claro. Porém, um controle rigoroso nas produções resultariam em peças caras, duráveis, menos prováveis a variações de tendências, redução no consumo, armários mais compactos, e um horizonte muito mais valioso em produções estilísticas e interessante, tanto para a cadeia produtora quando para a cadeia de consumo.

O que a moda parece nos entregar hoje é uma coleta de objetos que participam de um movimento de tendências de uma estação. Os critérios seletivos e os métodos utilizados para precificação priorizam quantidade sobre qualidade, maior lucro, menor durabilidade.

Colecionar é bem diferente de coletar.


1Uma coleção é considerada um sucesso por análises de marketing e vendas quando as vendas a preço cheio ultrapassam 60% do total da produção. 


2Sapato ou sandália com pequena abertura na frente, que deixa visível (‘peep’ do inglês, pode ser traduzido como ‘vista parcial’) apenas parte dos dedos do pé. 

3Termo utilizado para descrever mulheres jovens e atraentes, normalmente ícones populares. Não estranhamente, o termo remete de alguma forma também, em uma dura tradução, à idéia de garota-objeto.