Imagine o seguinte: uma locomotiva futurista impulsionada a vapor cruza uma Londres do período vitoriano (não se assuste com o paradoxo temporal) habitada por altivas senhoritas metidas em espartilhos e garbosos cavalheiros de coletes ornados com cartolas e monóculos – alguns com braços biônicos movidos à combustão –, vivendo numa cidade crivada de enormes fábricas e caldeiras entremeadas com improváveis engenhocas analógicas, funcionais ou não, sob um céu em que vez por outra vê-se um colossal zepelim cumprir sua rota. Pronto, você criou mentalmente um cenário steampunk.

No âmbito da literatura, trata-se de um subgênero da ficção científica, que tem como fonte de inspiração primária o escritor H. G. Wells, no século XIX, e que ganhou os contornos que tem hoje sobretudo pelas mãos de alguns autores norte-americanos, a partir da década de 1980. Da literatura para o cinema, do cinema para o design, do design para a moda, da moda para as artes visuais, chegando até a música (de grupos como Abney Park ou Dresden Dolls), o steampunk se tornou uma cultura, irmã do cyberpunk, prima da gambiologia. Se o assunto é design ou escultura, a produção steampunk passa pelo reaproveitamento de material industrial, engrenagens antigas e da estética de antiquário para a criação de obras de feição futurista.

O braço biônico que se move pela energia gerada por uma caldeira instalada nas costas de seu criador, um steampunker norte-americano, caminhará harmoniosamente de mãos dadas com a Armadura Gambiológica, por exemplo. Há, no cerne de ambos, algo de subversão do processo tecnológico. Os diletantes do steampunk estão espalhados pelo mundo e o Brasil, naturalmente, guarda sua cota. Criado em 2008 com representações no Rio de Janeiro e em São Paulo, o Conselho Steampunk está presente, hoje, em outros dez estados. Em entrevista publicada no site da entidade (www.steampunk.com.br, cuja apresentação define: “steampunk é a produção de ficção científica do século XIX no século XX, através de qualquer forma de expressão)”, um de seus criadores, Bruno Accioly, especialista em engenharia de usabilidade e desenvolvimento de projetos para web, diz que “a imprensa ainda se fixa na questão da moda e do estilo steampunk, mas, paulatinamente, percebemos o interesse da mídia pela literatura, ilustração, escultura e outras formas de expressão do gênero”.
Com efeito, uma lupa sobre a cena steampunk pode revelar um grupo de jovens paulistanos que usam nomes como Lord Fire e Jack Grave e se encontram vestidos a caráter para piqueniques em espaços públicos, ou artistas plásticos como o piauiense Braga Tepi, que se vale de aglomerados industriais para criar suas esculturas, ou ainda livros como “Steampunk – Histórias de um Passado Extraordinário”, “Vapor Punk”, “Deus Ex Machina- Anjos e Demônios na Era do Vapor” e “Steam Pink”, que são compilações de enredos do gênero publicadas no Brasil e que, segundo Accioly, já repercutem fora do país.

Na mesma entrevista publicada no site, ele pondera que “ainda há um longo caminho a ser percorrido até haver reconhecimento acadêmico acerca do potencial do steampunk como força motriz de produção cultural, popularização da história e interesse pela ciência”. Mas mesmo na esfera da Academia alguma produção já se insinua. Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia, Danilo Fraga Dantas dá uma boa ideia do que seja o steampunk, em texto escrito para o Programa de Educação Tutorial da instituição: “É certo que Wells vivia no século XIX e sua ideia de futuro só poderia estar influenciada por essa época. Mas no início da década de 1980 surgiram alguns escritores que parecem ter suas histórias inspiradas pela atmosfera dos livros de Wells. Esses autores realizam um salto duplo – para o futuro a partir de um retorno para o passado vitoriano – e assim nasce o steampunk, que transporta as ideias e convenções da ficção científica moderna para a Inglaterra do século XIX”.

Ele observa que o cenário pode mudar, mas a essência permanece. No cinema, um bom exemplo de deslocamento espacial da ambientação steampunk é o filme “De Volta para o Futuro III”, com seu velho-oeste tecnologicamente avançado. A locomotiva futurista que aparece no final, criada pelo Dr. Emmett Brown, aliás, é um ícone steampunk. Poderia ser ela mesma, a propósito, aquela que, na cena que abre este texto, atravessa, alguns metros acima do chão, a Londres vitoriana sonhada como adorno da ficção científica pelos steampunkers.

 

 


LITERATURA STEAMPUNK

Alguns livros do gênero

 

The Difference Engine
William Gibson & Bruce Sterling

The Grand Ellipse
Paula Volsky

Greatwinter Trilogy
Sean McMullen

Infernal Devices
K. W. Jeter

Jack Faust
Michael Swanwick

The Light Ages
Ian R. MacLeond

Lord Kelvin’s Machine
James Blaylock

A Nomad of the Time Streams
Michael Moorcock

Pasquale’s Angel
Paul McAuley

The Practice Effect
David Brin

The Steampunk Trilogy
Paul Di Filippo

The Sundowners Series
James Swallow

The Woman Between the Worlds
F. Gwynplaine Macintyre

 


AUTORES STEAMPUNK

Fundadores do steampunk na literatura, na década de 80

 

Kevin Wayne Jeter (1950)

Autor norte-americano de ficção científica e horror, K. W. Jeter, como é conhecido, estudou na Califormia State University, onde fez amizade com James P. Blaylock e Tim Powers (os outros dois nomes referenciais para a literatura steampunk). Através deles, conheceu Philip K. Dick, que veio a se tornar um entusiasta de sua obra. Jeter foi o primeiro a cunhar o termo steampunk, em uma carta para a revista “Locus”, em abril de 1987, para descrever a “tecnologia retrô” ou “história alternativa” presente nas obras que ele vinha publicando com Blaylock e Powers. Os mais notáveis romances steampunk de K. W. Jeter foram “Morlock Night” e “Infernal Device”.

 

James Paul Blaylock (1950)

Além de enredos steampunk, James P. Blaylock também se tornou célebre por ambientar histórias fantásticas e fábulas, dessas que transcorrem em reinos encantados, em nosso mundo, nos dias de hoje. Ele e seu amigo Tim Powers foram orientados por Philip K. Dick.

 

Tim Powers (1952)

O autor, nascido em Nova York, ganhou o World Fantasy Award duas vezes, pelos romances “Last Call” e “Declare”. Em suas narrativas, Powers normalmente recorre a fatos históricos, documentados, e enxerta neles elementos fantasiosos, oferecendo, também, a leitura de uma história alternativa.

 


 

CINEMA STEAMPUNK

Filmes referenciais no universo steampunk

 

Os Caça Fantasmas (1984)

Comédia dirigida por Ivan Reitman com roteiro de Dan Aykroyd e Harold Ramis, que também participam como atores.

 

Steamboy (2005)

Animação japonesa de Katsuhiro Otomo.

 

A Liga Extraordinária (2002)

Longa dirigido por Stephen Norrington, com Sean Connery.

 

As Aventuras do Barão Munchausen (1988)

Longa dirigido por Terry Gilliam.

 

Os Doze Macacos (1996)

Ficção científica também dirigida por Terry Gilliam, inspirada no curta-metragem La Jetée, de Chris Marker.

 

Hell Boy (2004)

Filme adaptado da HQ homônima criada por Mike Mignola, dirigido por Guillermo Del Toro.

 

De Volta para o Futuro 3 (1990)

Último filme da trilogia dirigida por Robert Zemeckis.