O que acontece com as coisas quando elas acabam? Inúmeros artistas e pensadores das mais diversas áreas do conhecimento diriam que as coisas, depois que acabam, continuam. E como defendem alguns deles, continuam mais plenas, porque livres do caráter de funcionalidade que lhes foi imputado de nascença. Objetos do cotidiano podem, então, ter sua função original transcendida e virar história, significado, lastro, memória, obra de arte.
De dadaístas a contemporâneos, do extremo oriente ao Brasil, não são poucos os nomes no panorama da produção artística e crítica que incorpor(ar)am em suas criações e pesquisas a reutilização do que já não tem uso, o emprego do precário, o reaproveitamento, a requalificação e reorganização de objetos já desprovidos de seu sentido primeiro.
Diferentes gerações de artistas têm utilizado como matéria prima e fonte de inspiração os resíduos da sociedade de consumo, valendo-se da acumulação, do colecionismo, da arquivação como impulso criativo. Porque só retendo o que já é, conforme a lógica de mercado, apto ao descarte, é que se tem a possibilidade de subverter a ideia de “útil” e, finalmente, o imperativo do consumo.
Dadaístas e acumuladores
Kurt Schwitters, figura central do Dadaísmo, nas primeiras décadas do século passado, foi um dos pioneiros na ressignificação do objeto comum. A ideia de acumulação é pilar em seus trabalhos, desde as assemblages utilizando tickets de ônibus, objetos encontrados e recortes de jornais, até no que é considerada sua principal realização, o “Merzbau”.
Trata-se de um híbrido entre instalação, escultura e performance, que consistiu na reorganização, ao longo de 15 anos (entre 1923 e 1937) de um apartamento, com tudo que havia dentro, sem que nada fosse descartado, mas com um rigoroso deslocamento de função ou encaixe sistêmico de cada parte. O edifício que abrigava a obra terminou por ser destruído em um bombardeio aliado em 1943.
Em meados da década de 60, o francês Arman funda o movimento do Nouveau Réalisme juntamente com Yves Klein e Jean Tinguely, dentre outros. Influenciado por uma exposição de Schwitters ocorrida em 1954, o artista vai progressivamente abandonando a pintura bidimensional para realizar suas séries mais notáveis, “Accumulation” e “Poubelle” (do francês: lixeira). As “Acumulações” consistiam de objetos comuns idênticos, organizados em caixas de madeira, que se transformavam em quadros. Arman afirmava que as obras surgiam insconscientemente de uma obsessão em colecionar coisas, hábito herdado da mãe. Suas coleções de relógios, câmeras, sapatos, instrumentos musicais e bonecos transfiguravam-se em trabalhos que sugeriam uma abstração pela repetição.
Memória ressignificada
O legado materno também serviu de fonte criativa para o chinês Song Dong em sua monumental instalação “Waste Not”, apresentada pela primeira vez no MoMA em 2009. O trabalho consiste na disposição dos mais de 10.000 itens compulsivamente acumulados por sua mãe enquanto viva, obsessão consequente da escassez de recursos durante o “Grande Salto Adiante” de Mao Tsé-Tung, entre 1958 e 1960. A desastrosa campanha, que pretendia desenvolver a economia da China em tempo recorde, resultou não só em 20 milhões de mortos, mas também em distúrbios como o da supracitada senhora. Assim como muitos de seus contemporâneos no país, ela passou a reter objetos como autodefesa ante o período de privações, evitando descartar tudo que pudesse ter algum uso no futuro. A obra de Dong evidencia não só as cicatrizes de um período histórico caro ao povo chinês, mas o intenso resgate da memória que pode emergir de uma coleção aparentemente banal, estabelecendo uma desconcertante aproximação entre questões gerais e locais, coletivas e pessoais, a partir de objetos ordinários.
Colecionismo pop
Inúmeros criadores internacionais trilham os caminhos da acumulação como crítica a uma cultura de produção excessiva de resíduos ou simplesmente opção estética. Da Índia emergente, despontam nomes como Subodh Gupta – que esculpe com centenas de panelas de cozinha minuciosamente organizadas – e Krisnajarad Chonat, que em 2011 apresentou na mostra Paris-Delhi-Bombay (Centre George Pompidou, Paris) a obra “My hands smell of you”, uma enorme assemblage de mouses, teclados e outros eletrônicos descartados. Também o britânico Wayne Chisnal, com suas esculturas de sucata, e a holandesa Marjan Teeuwen, que cria e fotografa instalações-cenários reproduzindo ambientes que poderiam pertencer ao mais obstinado dos acumuladores, parecem negar toda forma de minimalismo para exacerbar o eterno ciclo de uso e desuso das coisas.
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Mas não é preciso ir tão longe, do outro lado do Atlântico, a um velho mundo tão mais acossado pelo peso de seu próprio passado, tão mais repleto das coisas que já não são mais, para flagrar profícuos exemplos de artistas sucateiros – esse campo estético que parece ser trincheira contra o consumismo e que propõe questões que vêm desde Duchamp e passam tanto pela psicanálise quanto pela política.
No Brasil, já na década de 60, o genial Farnese de Andrade (1926-1996), mineiro radicado no Rio, passou a criar obras a partir materiais descartáveis naturais e industriais que recolhia, como brinquedos destruídos, estatuetas de santos, cacos de vidro, conchas, mariscos e outros rescaldos marinhos. Também utilizava móveis adquiridos em antiquários, depósitos, brechós ou mesmo catados na rua. Fotografias antigas, inclusive de sua própria família, constituem outro elemento de sua obra, em que fica evidente o peso simbólico de peças antigas como elo entre passado, presente e futuro.

Os processos de realização da paulistana Jac Leirner também implicam um longo tempo de coleta de objetos ordinários, normalmente ligados ao sistema de consumo. Esses objetos, retirados de seu lugar original e inseridos no circuito artístico, passam a sugerir novos significados. Jac pode, atuando como colecionadora, gastar até quinze anos para acumular o que acha necessário para uma obra. Na década de 80, ela realizou uma série de trabalhos com papel-moeda. Em “Os Cem” (1987), valeu-se de notas de 100 cruzeiros.
As cédulas foram furadas, presas em longas tiras e espalhadas pelo chão. Já em “Corpus Deliciti” (1985-1993), a artista reuniu objetos que, digamos, pegou à revelia de consentimento em aviões de carreira, como cinzeiros, copos, cobertores e outros. De Sara Ramo já se disse que “se apropria de elementos e cenas do cotidiano, deslocando-as de seus lugares de origem e rearranjando-os em vídeos, fotografias, colagens, esculturas e instalações. Ramo investiga o momento em que os objetos param de fazer sentido na vida das pessoas para criar situações em que a calma e a ordem se perdem”. Dentre muitos exemplos da forma intrigante e sensível com que Sara lida com esses objetos em sua obra, estão a instalação “Jardim das Coisas do Sótão” (2004) e o vídeo “Traslado” (2008), em que a própria artista encena o esvaziamento de uma mala contendo um número de “tranqueiras” que parece nunca acabar. A artista parece nos provocar: o quê e quanto nos interessa guardar de cada mudança na vida?
A acumulação e reorganização de coisas também está na base do trabalho de Márcia X (1959-2005), com temas (ou obsessões?) muito bem delineados. Utilizando objetos eróticos, brinquedos infantis e ícones religiosos – grande parte deles garimpada na tradicional feira do Troca-Troca, na Praça XV, no Rio de Janeiro – suas performances e instalações eram marcadas pela relação sexo/infância, em que objetos pornográficos são transformados em brinquedos infantis e estes, em objetos eróticos. O movimento, aplicado pelo uso de circuitos eletrônicos em suas esculturas, evidencia a percepção do objeto como um corpo vivo.
Artistas sucateiros
Com o trânsito fluido e impreciso entre artista e sucateiro, há o caso exemplar de Arthur Bispo do Rosário. Em determinado momento de sua longa trajetória de mais de 50 anos como interno da Colônia Manicomial Juliano Moreira, localizada no subúrbio de Jacarepaguá (RJ), sob o diagnóstico de esquizofrênico e paranoico, ele passou a produzir objetos com diversos tipos de materiais oriundos do lixo. Entre os temas, destacam-se navios (recorrente devido à sua relação com a Marinha na juventude), estandartes, faixas de misses e objetos domésticos. Bispo terminou por alcançar reconhecimento póstumo, com sua obra sendo elevada à categoria de arte vanguardista e frequentemente comparada à de Marcel Duchamp. Ele foi o grande homenageado da Bienal de São Paulo em 2012.
Nessa mesma linha, é impossível não citar parte da obra de Vik Muniz. Suas esculturas feitas com milhares de peças descartadas, minuciosamente dispostas em proporções enormes, transformam-se em imagens fotográficas de aves, peixes e personagens humanos literalmente compostos por sucata.
A função em Baudrillard
A questão do colecionismo, da acumulação e da reorganização sistêmica de coisas ecoa no campo da filosofia aplicada às mais diversas áreas. O teórico francês Jean Baudrillard sugere que os objetos passam continuamente do enfoque funcional para o simbólico dentro de um determinado sistema cultural. Ele afirma que os objetos possuem significados imanentes e que o próprio adjetivo “funcional” não está ligado apenas à finalidade prática das coisas, mas também à sua capacidade de fazer parte de um jogo de relações. Tais ideias estão expressas em seu Sistema de Objetos.
No livro, Baudrillard enfoca também o lugar da coisa antiga, já desprovida de função. A importância das antiguidades se dá justamente na medida em que contradizem o raciocínio funcional para cumprirem um propósito de outra ordem: a sobrevivência do tradicional e do simbólico através do testemunho, da lembrança, da nostalgia e da evasão. Em sua dissertação de mestrado em design para a Universidade Federal do Paraná, o pesquisador Marcos Beccari aponta que “para Baudrillard, o homem não se sente em casa no meio funcional, justificando assim a presença necessária do objeto antigo como um reorganizador do mundo e, simultaneamente, um álibi que preserva o foro íntimo daquele que o possui.
Enquanto o objeto funcional refere-se à atualidade e se esgota na cotidianidade, o objeto antigo aparece (tanto ao nível dos objetos quanto dos comportamentos e das estruturas sociais) como uma dimensão regressiva que, embora testemunhe um relativo fracasso do sistema, paradoxalmente o faz funcionar”. Na prática que a teoria sustenta, evitar o descarte e o consumo de novos bens a que o mercado e o próprio sistema impelem será sempre mais do que simplesmente acumular tralhas. É só uma questão de olhar de novas maneiras para cada coisa que nos cerca e “garimpar” nelas o valor simbólico apontado por Baudrillard. Nada está perdido.
Sucateiros Artistas
Numa via contrária mas não muito distante dos artistas sucateiros, haverá sempre os sucateiros artistas.
A mídia se encarrega de, vez ou outra, trazer alguns deles à tona. É o caso de Wagner Agnaldo de Souza, um vigilante de Samambaia, no Distrito Federal, que há dez anos reaproveita sucata para fazer enfeites como relógios, guitarras e motos. Os preços das peças, vendidas em uma feira da região, variam entre R$ 40 e R$ 600. Geralmente retirado de veículos, enxadas e panelas, o material que ele emprega em suas obras é recolhido nas ruas ou doado por vizinhos. A habilidade para transformar ferro, plástico, madeira e vidro em arte surgiu ainda na infância. O vigilante conta que fez todos os brinquedos dele e das seis irmãs com material encontrado nas ruas.

É compreensível que o Brasil seja um solo fértil para sucateiros artistas, por suas peculiaridades culturais, mas assim como os artistas sucateiros, seus contrapartes têm geografia vasta. O fazendeiro chinês Wu Yulu ficou famoso em todo o mundo depois de inventar e construir 47 robôs com ferro velho no quintal de sua casa. Os robôs desempenham tarefas variadas, como pular, pintar, beber, massagear e até levar o dono em um riquixá, aquele típico veículo chinês que é puxado por uma pessoa. Depois de um longo período de dívidas e descrédito, motivados por sua obsessão, ele foi convidado a exibir mais de 30 de seus robôs na Feira Mundial de Artes de Xangai.