“Toda sociedade economicamente dependente subproduz cultura alienada.”
Lucia Santaella

Gostaríamos de inaugurar essa sessão sobre as ironias da tecnologia, ou seja, tudo aquilo que não será propaganda e nem propagado pela indústria de consumo dos aparelhos eletrônicos e informáticos. Aqui veremos os erros, as anomalias, os defeitos e as ciladas que a tecnologia nos “impõe”, simplesmente pelo fato de confiarmos demais nos seus botões e benefícios – fatos que só podem ser tratados com certa dose de ironia. Abordaremos não só a questão técnica, os bugs, mas também o aspecto social, político e humano, principalmente no Brasil. 

Que atire o primeiro bit quem nunca dependeu da tecnologia e na “hora H” ela falhou, ou não atendeu conforme a necessidade. A impressora estragou, o torpedo chegou tarde, a máquina de lavar jorrou água e o HD apagou todos os seus dados. Isso não é hipotético, pode acontecer com qualquer um de nós. Queiramos ou não, os erros fazem parte desse meio imprevisível, mas poucos tocam no assunto. Para iniciar a conversa, é bom recordarmos de conceitos críticos que estão inseridos em nossa “tecnovida”, pois sem eles corremos o risco de tornar-nos cegos e fiéis compradores, enfrentando filas surreais por um mero aparelho velho, pois já saiu da fábrica. Os pensamentos do filósofo Vilém Flusser e a sua incrível e ainda atual filosofia da caixa preta servem para lembrarmos que “a máquina deve agir em função do homem em todos seus aspectos sociais e culturais” e “o homem não pode ser escravo da máquina”.

A filosofia propõe um olhar crítico e, por que não irônico, ao modelo tecnológico industrial para tentar “libertar o homem de um mundo programado, no qual se encontra preso a regras e obrigações”. Como sabemos, a tecnologia e a indústria modelam as relações humanas e sociais, o que gera, em cada país, valores determinados e determinantes. Importantes trechos e citações de “A Revolução da Microeletrônica”, de Francisco A. Queiroz, tocam justamente nesta corrente de pensamento das mágicas soluções tecnológicas. Uma nova tecnologia vem empacotada de promessas transformadoras que nunca acontecem de fato. Segundo Queiroz, “tudo veio carregado de promessas no sentido de integrar o país, erradicar o mal crônico do analfabetismo através da teleducação, da Universidade do Ar, constituindo-se, em suma, estes meios, em veículos de entretenimento, educação e informação. Na prática tornaram-se mais veículos de entretenimento e propaganda voltada para o consumo… Esses meios se constituíram em grandes empresas controladas pelo setor privado, não obstante, no caso, por exemplo, da radiodifusão (rádio e TV), ser uma concessão pública”. Se olharmos hoje para o índice de analfabetismo no país, é fato que nenhuma destas “novas” tecnologias, como tablets ou netbooks, serviram para melhorar essa estatística. Ironicamente, nenhuma tecnologia é criada como alternativa acessível para alfabetização e uso nas escolas.

Somos totalmente estimulados pela mídia que divulga orgulhosa suas notícias: que o Brasil é o primeiro país em número de acesso às redes sociais, é um dos maiores compradores de aparelhos de telefonia móvel do mundo e uma economia emergente que recebe cada vez mais investimentos internacionais. O fato é que nunca confrontamos esta visão com a falta de incentivo à criação de nossas próprias tecnologias. Exportamos o que é essencial e importamos lixo. Como diz o Mundo Livre S/A, “o que era velho no norte se torna novo no sul”.

As ironias escondidas debaixo dos tapetes

Uma matéria do jornal Estado de São Paulo mostra que existe uma contradição em relação aos números da ciência e tecnologia no Brasil, pois somos o 11º maior produtor de ciência do mundo, com cerca de 2,4% dos artigos publicados nas principais revistas científicas mundiais. No entanto, não estamos nem entre os 23 principais produtores de tecnologia. O Brasil teve a sexta escola técnica do mundo, em Santa Rita do Sapucaí – MG, em 1950.

Hoje em dia, vemos disputas estaduais para abrigar uma duvidosa montadora internacional como a Foxconn, alvo de críticas internacionais por suas relações de trabalho forçado e altos índices de suicídio. Somos esmagados (ou apagados) pelo poder das indústrias internacionais e pela falta de apoio do governo. Um dos casos, dentre outros vários, é o exemplo do Fat Mac, um computador criado através de engenharia reversa no Brasil em 1985, apenas um ano depois do lançamento do Macintosh. Este jamais chegou a entrar em produção comercial, por pressão da Apple Computer e do governo dos Estados Unidos, que queixaram-se de violação de direitos autorais junto ao governo brasileiro.

Outro caso aconteceu com a Gurgel, fabricante de carros com uma linha de pesquisa inovadora, voltada para utilização de recursos locais. A indústria produziu aproximadamente 43 mil veículos genuinamente brasileiros durante seus 27 anos de existência e construiu carros eletrônicos, como o Itaipu E150. A empresa solicitou apoio financeiro quando o governo Collor liberou a entrada das montadoras internacionais. Sem dar a mesma atenção e apoio à indústria nacional, em 1994 foi decretada sua falência. Ironicamente, sua patente foi vendida em 2004 por apenas R$ 850,00.

Para fechar os primeiros casos de ironia envolvendo as tecnologias e mostrar que a questão tem raízes profundas, segue outro exemplo do livro “A Revolução da Microeletrônica”: o gaúcho Roberto Landell de Moura foi pioneiro em experimentos de radiotelegrafia no mundo, nos anos de 1893 e 1894. No entanto, ninguém o reconhece pelos livros de história ou de inventos porque Marconi, um italiano, registrou antes a patente, baseado em suas experiências realizadas entre 1895 e 1897. Em 1901, Landell já recomendava a utilização das ondas curtas para aumentar a distância das transmissões, o que Marconi declara inútil, só vindo a reconhecer seu erro em 1924.

Outra ironia nesse mesmo caso: Marconi conseguiu apoio da marinha italiana, que concedeu os navios solicitados para seu experimento, enquanto a marinha brasileira negou vários pedidos de Landell. Mais curiosidades sobre esse “sacerdote da tecnologia” serão resolvidas em outras páginas desta revista.

 

Como dissemos, a ideia principal dessa seção é tratar sobre as tecIRONIAs da nossa vida.
Se você quiser contar algum caso sobre esses erros, anomalias, defeitos ou ciladas
que a tecnologia nos “impõe”, envie um e-mail para
ti@facta.art.br