
O professor Laymert Garcia dos Santos é um dos mais respeitados intelectuais brasileiros na atualidade. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Sorbonne (França), é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp.
Sua pesquisa concentra-se principalmente em Sociologia da Tecnologia e em Arte Con-temporânea, acumulando, desde a década de 1980, uma extensa bibliografia em tópicos que são de grande interesse da ciência gambiológica: tecnologia, biotecnologia, arte contemporânea, política e Brasil. Seu livro “Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética”, lançado em 2003, é uma das maiores referências nacionais na discussão sobre a influência das tecnologias na sociedade.
Para completar, Laymert é estudioso e entusiasta das culturas indígenas praticantes do xamanismo, o que o aproximou dos povos Yanomani e possibilitou o desenvolvimento de um ponto de vista peculiar na relação entre as tecnologias ancestrais e as contemporâneas.
O inquieto professor recebeu a Facta para a entrevista a seguir, em que discorre sobre gambiologia, hackeamento, política, arte contemporânea e antropofagia, sempre com simplicidade, gentileza, o olhar astuto e a opinião aguda.
Em sua obra é possível observar um rompimento entre tempos: o que é contemporâneo está sempre olhando o passado, e ao mesmo tempo os primatas são analisados por um ponto de vista totalmente contemporâneo. Como você analisaria o conceito de “gambiologia” sob este aspecto?
A gambiologia não opõe o mundo digital e o mundo da gambiarra. Ao contrário, há uma tentativa de se pensar a articulação entre ambos. Eu acho que vocês vão em cheio no que interessa. Vou contar uma história que me marcou e me ensinou muito. O psicanalista francês Félix Guattari veio ao Brasil em 1982 e assistiu a um filme sobre o candomblé. Ele ficou muito impressionado ao ver uma filha de santo pintada para o ritual e comentou: “é fantástico, porque ela parece um Picasso e, ao mesmo tempo, o está acontecendo é completamente mágico. E é incrível, porque essa mesma pessoa que está no terreiro de candomblé, daqui a meia hora vai sair e pegar o seu walkman. Ou seja, ela vai passar do tempo mítico pro tempo tecnológico sem conflito algum”. Eu achei a observação muito importante pra nós, brasileiros, porque aqui a gente tinha, ao contrário dos países já industrializados, uma mistura de temporalidades muito grande. Tanto o tempo profano e o sagrado quanto o tempo do passado e do futuro.
A lógica de pensamento contemporânea é a da recombinação e a gambiarra é também uma recombinação. O Brasil é um terreno fertilíssimo pra isso. Temos uma experiência acumulada de recombinações, de desvios de funções, dada pela precariedade e pela necessidade de corresponder dentro dessa precariedade a certas respostas. Isso tem a ver com as recombinações que os próprios sistemas informacionais exigem. Para poder navegar nos sistemas eletrônicos, você precisa de intuição o tempo todo, porque as interfaces são todas inteligíveis, mas também intuitivas, e então esse ponto de confluência e a lógica da recombinação, pra mim, são o ponto central nessa história.
Seu livro “Politizar as novas tecnologias”, de 2003, tem o subtítulo “o “impacto sócio técnico da informação digital e genética”. Passados mais de dez anos e partindo da experiência do digital 2.0, o que você acha que mudou, e o que é mais relevante para se pensar a tecnologia e a política naquele tempo e hoje?
A velocidade com que as coisas estão mudando foi muito maior do que eu era capaz de pensar. Em 2007, 2008, eu conheci um pesquisador chamado Constantino Scaracasi que estudava o futuro no Escritório Europeu de Patentes. Ele me revelou uma coisa com a qual eu não parei mais de conviver: os especialistas em prospectiva de desenvolvimento tecnológico sempre param as suas pesquisas em 2030. As projeções nunca vão além. E elas não vão além porque depois de 2030 é inimaginável! Ele tinha uma equipe de 40 pessoas estudando o futuro e eles descobriram que se você pegasse a intensidade tecnológica do ano 2000 e projetasse para os 100 anos anteriores, o século XX comprimia-se e se transformava em 16 anos! Eles pegaram essa mesma medida e projetaram de 2000 para os próximos 100 anos e descobriram que a aceleração tecnológica era tal que 100 anos equivaliam a 25.000 anos. É inimaginável. Porque nós estamos no que os especialistas chamam de avalanche tecnológica. Isso já foi apontado desde a década de 1970 por um inventor norte-americano chamado Richard Buckminster Fuller. Ele disse: “Decolou”. A aceleração é exponencial, quer dizer, é a aceleração da aceleração. É como quando se manda um foguete para o espaço, durante um certo tempo ele está sob o efeito da gravidade, a partir do momento que ele deixa a atmosfera ele não encontra mais nenhuma resistência: é a sua “velocidade de escape”. Isso já aconteceu com a tecnologia.
Não dá pra considerar 25.000 anos, então vamos considerar uma aceleração de 3.000 anos, que vai acontecer nos próximos 20. Isso significa que o impacto é equivalente a uma tribo na África que vivia seguindo suas tradições e de repente é arremessada no século XXI. Esse impacto de temporalidade é semelhante ao que estamos sofrendo, só que com uma diferença. Ele vinha para as tribos de fora para dentro e, no nosso caso, ele vem de dentro para fora, porque é a nossa sociedade que está fazendo esse impacto. Então, de certo modo, nós somos os neo-primitivos deste outro mundo que está surgindo. O impacto é tão violento e tão forte que até essas dicotomias moderno/tradicional foram apagadas. O contemporâneo trata o moderno como algo que é tão arcaico quanto o tradicional. Ao mesmo tempo, o próprio tradicional já não é mais arcaico, porque eu posso olhar uma tribo indígena e dizer que eles desenvolveram um outro tipo de tecnologia que eu não sou capaz de entender. Mas eles desenvolveram, por exemplo, uma tecnologia extremamente sofisticada no xamanismo, que nós não achamos que é tecnologia porque eles não têm aparelhos, mas eles desenvolveram de outro modo, no corpo, na mente, no modo como eles acessam os mundos virtuais. Por que eu posso entender isso desse modo? Porque a dicotomia moderno/tradicional já foi desconstruída pelo próprio processo de aceleração da aceleração.
De onde vem uma certa nostalgia do passado e mesmo uma valorização da precariedade que notamos em alguns artistas e pesquisadores? Seria a necessidade de algo que se perdeu ou simplesmente um fetiche?
Num mundo predominantemente digitalizado, a presença sensorial fica diminuída. Eu acho que a gambiologia busca maquinações com tecnologias mais antigas, nas quais o que contava mais era o mecânico, o objeto, a presença física, um funcionamento que, de certo modo, é apreendido muito mais sensorialmente. Eu acho que há uma nostalgia dessa presença, que é cada vez mais comprometida porque, de certo modo, a tecnologia digital é um fetiche e uma fissura: você tem que estar conectado o tempo todo. Se você pudesse conceber essa tecnologia como algo que você entra e sai e que o mundo que não é esse já rarefeito é tão importante quanto o outro (e, inclusive, é muito mais rico você entrar e sair do que só ficar nele), aí você começa a perceber que no presente também existe uma sensorialidade que pode ser forte, desde que seja concedida a sua experiência às pessoas. Eu acho que a arte contemporânea se coloca muito nesse sentido. Muito de uma espécie de afeto anti-tecnológico que existe em parte da arte contemporânea, por exemplo, até na body art, vem da necessidade de se contrapor a essa rarefação. Mas é possível você trabalhar as sensações dentro do mundo digital, como as instalações imersivas que solicitam um envolvimento que não é só puramente mental ou intelectual.

“Os hackers são os aristocratas da avalanche tecnológica.”
Você afirma que o xamã, através das plantas ou do ayahuasca, talvez consiga se conectar a mundos virtuais. Um cientista de garagem pode, através de objetos físicos e técnicos mais rudimentares, fazer uma ponte entre o homem e a máquina?
Eu acho que pode. Me lembro de uma exposição que vi há uns 30 anos em Paris, de um artista europeu cujo trabalho era unicamente desvio de funções, de objetos técnicos da primeira revolução industrial. E aí era fantástico, porque o que ele fazia era enlouquecer as máquinas. Eu não me lembro do nome dele, mas a exposição era hilária, porque havia uma inteligência fantástica em desviar os objetos de sua função e enlouquecer seu potencial tecnológico. Porque a tecnicidade do objeto não se esgota nele mesmo. Os objetos evoluem e essa tecnicidade está, de certo modo, congelada, mas existe uma abertura para ela poder ser puxada em algumas direções. Se a gente pensar qual foi o papel da garagem no início da virada cibernética, no começo da invenção dos PC’s, etc… Tudo isso foi na garagem. E foi o quê? Bricolagem. São agenciamentos que foram tentados, recombinações feitas a partir de funções que já existiam e que criaram coisas novas. É preciso fazer isso também com os computadores, com o digital.
Qual a importância do hacker para a cultura contemporânea?
Pra mim o hacker é uma figura central. Existe um livro do teórico finlandês Pekka Himanen sobre o hacker que eu acho interessantíssimo. Ele falou que o hacker é a aristocracia da era cibernética. Aristocracia não no sentido de classe social, mas no sentido primeiro da palavra, que eram os aristoi, os melhores, os que estão mais capacitados a lidar com o mundo no qual estão vivendo. Eu acho que os hackers são os aristocratas da avalanche tecnológica. Eles estão mudando uma série de padrões e parâmetros de uma maneira que não está sendo reconhecida. A política não pode mais ser pensada da mesma maneira depois de Assange, Bradley Manning, Snowden… A própria maneira de se pensar a política mudou com a abertura da sua caixa do segredo. Mostrou-se, por exemplo, que a palavra “democracia” como é empregada hegemonicamente no ocidente não faz mais sentido. Os Estados Unidos não podem mais fazer uma intervenção em algum lugar e
dizer que é em nome da democracia, quando eles têm a NSA. Portanto, quando instalaram esses sistemas de controle, eles mesmos desconstruíram a própria noção de democracia. Então o os hackers fizeram? De certo modo, desvendaram no plano político o que aconteceu em escala global, para todos os povos do planeta. Pra mim existe política antes e depois do Snowden. E não é por acaso que um intelectual sueco propôs que ele ganhasse o prêmio Nobel da Paz. Eu acho que ele deveria ganhar. Do ponto de vista da política, pra mim, é por aí.
Do ponto de vista da arte, o hacker é como um sujeito que trabalha com criação e com invenção. Eu faço uma distinção entre criação e invenção: o artista, em geral, ele trabalha com criação, o tecnólogo trabalha com invenção. O hacker opera com ambos porque, de certo modo, ele cria uma situação nova. Ele mexe com a lógica de funcionar das coisas. E ao mexer com essa lógica, ele põe outros atores dentro do processo, ele próprio já é um ator totalmente novo dentro dos processos, e ele quebra os parâmetros, ele acaba com as oposições tradicionais que orientavam a nossa maneira de pensar.
Você poderia desenvolver melhor essa questão do desvio de função, mais especificamente no Brasil?
O primeiro ponto que me interessa bastante é uma mudança de mentalidade que aconteceu com relação à maneira de ser brasileiro, por questões históricas, culturais etc. Para essa transformação, em confluência com a cultura digital, existe uma figura emblemática que é o Gilberto Gil. Ele foi a figura que percebeu o que era preciso juntar, articular, que era a capacidade criativa e inventiva do povo brasileiro e suas especificidades, com o advento da virada cibernética. Poucas pessoas podem fazer esse tipo de articulação. Porque é preciso conhecer muito bem a cultura brasileira pré-digital e conhecer bem a tecnologia. O Gil, se a gente fosse percorrer sua produção musical ligada às máquinas, você vê que ele tem um pensamento sobre a tecnologia, e por isso ele pôde articular a cultura brasileira com a cultura digital. E, ao fazer isso, e transformar em uma política de Estado, ele abriu a possibilidade de uma potência imensa, que é articular o que há de mais contemporâneo com o que é mais forte no Brasil, uma capacidade de sobrevivência, de improvisação e de afirmação, de positividade de transformar o negativo em positivo, que é da adversidade que vivemos. Nós vivemos um paradoxo enorme, somos um povo que tem cultura sem cultura. Porque não teve acesso. Tem uma cultura que foi absorvida e que tem uma positividade muito grande. Quem conhece as três matrizes da cultura brasileira – a indígena, a negra e a europeia –, e o modo de articulação entre elas, sabe que aí tem uma potência muito grande. Mas essa potência ainda pode ser trabalhada na era cibernética de uma maneira muito mais forte, e é isso que a gente tem pra apresentar ao mundo, pra dizer que é a nossa diferença.
Você pesquisou o pajé, o xamã, tem uma vivência com as culturas indígenas, mas comentou que está se mudando para um apartamento no Pacaembu. Como é possível estar sempre se renovando?
Eu tenho uma relação com os Yanomami que já vem de longa data. O que me interessou no xamanismo? O ponto de partida era que eu tinha que quebrar a superioridade ocidental de achar que aquilo que a gente não compreende é arcaico, primitivo, atrasado. Aquilo que eu não compreendo eu não sei o que é. Eu também não posso imaginar que uma população indígena ficou parada no tempo durante 3.000 anos. Porque se eles são humanos também, e se eles têm inteligência, isso significa que eles evoluíram de alguma maneira. O xamanismo, pra mim, é um modo de existência e de conhecimento extremamente complexo e sofisticado. E é uma tecnologia de acesso aos mundos virtuais que nós não conhecemos, tão ou mais sofisticada do que a nossa. Eu não vou me converter em um xamã porque eu não tenho a cultura deles e eu não vou poder ter o pensamento mágico que eles têm, porque a minha herança cultural é outra. Mas eu sou capaz de entender que, através do pensamento mágico, eles podem fazer uma elaboração não só cultural, mas do ponto de vista do acesso a experiências de conhecimento e a modos de ser e dimensões de mundo que são mais interessantes ou mais sofisticadas do que as nossas. O interessante é ver como a gente pode entrar em contato com eles, para que eles nos contem como é isso. E a gente ver se pode, inclusive através das nossas diferenças, colocar alguma coisa em comum. Se a gente conseguir estabelecer interfaces ou pontos de contato, isso é extremamente produtivo. A primeira coisa a se fazer é quebrar a mentalidade de colonizado. Porque aí você começa a poder se relacionar com o outro da maneira como o outro é, e aí você começa a ouvir o que o outro está falando.
Nós vivemos um paradoxo enorme, somos um povo que tem cultura sem cultura.
O “Manifesto Antropofágico” é um ponto fundamental dessa história, eu até vou fazer uma palestra sobre o dilema hamletiano do brasileiro, que é um espelho invertido do dilema que a gente coloca para os índios: “vocês têm que ser brasileiros, senão vocês não têm direito à existência”. Aí, quando eles se convertem em brasileiros, a gente diz: “tá vendo, você deixou de ser índio. Então, como você não é índio mais, você não tem mais direito a certas prerrogativas”. Se ele insiste em ser índio, você fala: “tá vendo, você não quer ser brasileiro”. É o que, na psicologia, o Gregory Bateson chamava de double bind, você coloca duas posições impossíveis para a pessoa, ela não pode assumir nem uma nem a outra, e ela fica esquizo. O abismo lançado, formulado pela dúvida hamletiana do Oswald, era “tupi or not tupi, that’s the question”. Enunciada em inglês! É vertiginoso. Quanto mais você pensar nisso, mais você vê qual é o problema do brasileiro, que não sabe quem ele é. Então eu acho que tem que ser transformado não em um “ou, ou”, “tupi or not tupi”, mas sim em “tupi and not tupi”.
